Foi bonita a fiesta, pá

Um livro sobre um livro. "The Sun Also Rises/Fiesta", de Ernest Hemingway, escrutinado à lupa por uma jornalista cultural de excelência.

− Oh, Jake – disse Brett –, podíamos ter passado juntos uma vida bestialmente boa!
À nossa frente, um polícia montado, de caqui, dirigia o tráfego. Levantou o bastão. O carro travou de repente, apertando Brett contra mim.
− Sim – disse eu. – Pois não é bonito pensar nisso?

E assim cai o pano de um dos mais extraordinários romances do século vinte: “The Sun Also Rises”, de Ernest Hemingway, publicado entre nós (e não só), com o título “Fiesta”, numa tradução primorosa de Jorge de Sena. O autor, um canalha? Talvez. Mas a vida é demasiado breve para nos esquecermos dos lugares onde fomos felizes. E em “Fiesta” sempre fui feliz, há muitos anos; e ainda hoje o sou, de todas tantas vezes que o leio, vorazmente meu.

Sobre Ernest Miller Hemingway, nascido em Oak Park, Illinois, em 1899, e suicidado em Ketchum, Idaho, 1961, bem pode usar-se o cliché «está tudo dito». Mesmo em Portugal temos livros que, em jeito de manuais de auto-ajuda ou guias para epicuristas, tratam de “A Boa Vida Segundo Ernest Hemingway”, de A. E. Hotchner, biógrafo e velho amigo, companheiro de mil e uma aventuras. Tudo dito e escrito? Puro engano. Para quem quiser uma narrativa biográfica laudatória, ainda é muito recomendável o suculentíssimo e extenso relato “Papá Hemingway”, igualmente da autoria de Hotchner, saído entre nós há muitos, muitos anos, pela Bertrand (talvez o encontre num alfarrabista ou na OLX, há horas de sorte).

Nos nossos dias, a produção hemingwayana não tem fim nem dá mostras de abrandar. Ainda há pouco, de Mary V. Dearborn, “Ernest Hemingway: A Biography”, monumental volume de 738 páginas, e, um pouco menos encorpado, com apenas cerca de 300 páginas, um peso-pluma, “Ernest Hemingway: A New Life”, de James H. Hutchinson. Continua, entretanto, a ser editada pela Cambridge University Press a sua vasta correspondência; saiu o terceiro volume, também de mais de 700 páginas, que cobre apenas o período 1926-1929.

Data de então – de 1926, para sermos mais precisos – aquela que é, literalmente, a sua obra-prima, “The Sun Also Rises”. Passadas tantas décadas, as vendas permanecem em alta: uma estimativa aproximada afirma que o livro vende cerca de 120 mil exemplares por ano só nos Estados Unidos, e que esse número duplica ou triplica se olharmos para os outros países. O editor, Charles Scribner III, diz que ficará surpreendido se as vendas anuais de Fiesta forem inferiores a 300 mil cópias, no mínimo.

Em “Everybody Beahaves Badly – The True Story Behind Hemingway’s Masterpiece The Sun Also Rises”, Lesley M. M. Blume vem – como o subtítulo indica – narrar ao pormenor a génese de Fiesta. Nascida em Nova Iorque mas vivendo em Los Angeles, Lesley Blume é uma jovem – e bonita – jornalista cultural, que escreve regularmente para a Vanity Fair, tendo já publicado artigos no New York Times, no Wall Street Journal, na Vogue, na Paris Review Daily, etc. O livro que agora deu à estampa causou sensação, sendo aclamado por toda a imprensa norte-americana, do Washington Post ao Financial Times, passando pela Forbes ou pelo Wall Street Journal. Nas páginas do Times Literary Supplement, Philip Lopate qualificou o livro como “excelente”, recomendando a sua leitura em conjunto com o terceiro volume da correspondência de Hemingway.

Os elogios justificam-se: “Everybody Behaves Badly” descreve de forma notável o processo de elaboração do “primeiro livro” e as angústias e dúvidas que sempre assaltam os escritores, ou candidatos a sê-lo. No caso de Hemingway, o martírio era agravado pela sua ambição desmedida, pela raivosa inveja pelo sucesso de Scott Fitzgerald e as constantes picardias com a mulher deste, a tresloucada Zelda.

Sem procurar o assassinato de carácter, o livro de Lesley Blume mostra como Ernest Hemingway cedo começou a construir a “personagem literária”, e não só, que o celebrizaria mundialmente como o mais viril dos prosadores, o caçador intrépido e aficionado de touradas, o homem livre e sem medo que bebia e comia desmedidamente, que se divertia a valer, como ninguém, à pesca do espadarte nos mares das Caraíbas ou abatendo gazelas no sopé do Kilimanjaro; mas, ao mesmo tempo, o caminhante solitário que, enquanto lambia as feridas de herói de guerra atingido em combate (como Jake, o seu alter ego em Fiesta), cultivava uma atitude introspectiva com laivos transcendentalistas (aliás, a escolha de um trecho do Eclesiastes para título do seu livro não foi inocente).

Na senda do êxito, Hemingway sabia onde pisava, ora mandando fabricar um anel feito de um dos 227 estilhaços que trouxe no corpo quando voluntário em Itália na Primeira Guerra (e que exibia às mesas dos cafés de Paris), ora frequentando o salão nocturno de Gertrude Stein, ora insinuando-se nas boas graças de Ezra Pound, seu primeiro mentor, ora indo até Pamplona, para os touros e para a farra imensa.

Alcançada a fama, Hemingway esquecer-se-á de Gertrude Stein, nunca agradecerá devidamente o apoio absolutamente fundamental que, com uma generosidade ilimitada, Scott Fitzgerald sempre lhe prestou, e acabará por trocar a mulher, Hadley Richardson, graças à qual pôde sobreviver em Paris e iniciar a sua carreira nas letras, por uma amante mais voluptuosa, culta e requintada.

Tudo isto será desculpável (ou não) se nos ativermos apenas à grandeza literária de “The Sun Also Rises”, livro que inaugurou um novo estilo de escrita, uma linguagem revolucionária, feita de frases curtas e sincopadas, à maneira do jornalista e correspondente que Hemingway começou por ser (a propósito, chegou a entrevistar Mussolini, nos alvores das carreiras de ambos).

A Gertrude Stein foi buscar a frase célebre que está no pórtico de Fiesta: “Sois uma geração perdida”. Era esse, aliás, o projecto literário de Ernest Miller Hemingway: pintar o retrato a sépia da lost generation dilacerada pelos dramas do pós-Grande Guerra, sem horizonte à vista nem esperança de redenção. Seja em Paris ou nas Festas de San Fermín, na Riviera francesa ou nas montanhas austríacas, a boémia convertera-se numa religião, à falta do que quer que fosse para acreditar e ter fé.

Com a Guerra de Espanha, renasceria a esperança – a esperança de Malraux – no combate por “uma causa”. Mas, até lá, uma geração inteira arrastou-se pelas ruelas e pelas mansardas de Paris, deambulando o tédio entre os cafés da Rive Gauche e a famosa livraria Shakespeare & Co., de Sylvia Beach.

Também Ernest Hemingway conheceria a penúria, os dias frios e amargos em que andava à caça de pombos nas ruas para dar de comer à mulher e ao filho recém-nascido; os tempos em que, como dirá numa evocação dessa época, “éramos muito pobres e muito felizes” (A Moveable Feast/Paris é Uma Festa, obra póstuma de 1964). Felizes ou talvez não. As sucessivas recusas dos editores causaram-lhe inquietações profundas – “The rejection slip is very hard to take on an empty stomach”, dirá, mais tarde, a um amigo.

Depois, consolidou-se o mito: o avôzinho de barba branca de Pai Natal, o soldado que em 1944 libertara o Ritz de Paris e as suas caves prenhes de vinhos e conhaques, o veterano de guerra ferido em combate, o militante de causas ganhas ou perdidas que desprezava os ademanes de Fitzgerald e outros mundanos, o amante e praticante de pugilismo, o escritor que, com “The Sun Also Rises”, esmagara “The Great Gatsby”, saído no ano anterior. Acima de tudo, o homem que vivia na vertigem da morte.

Entre as curiosidades do livro de Lesley Blume, sobretudo para quem não estiver familiarizado com a obra de Hemingway e o seu contexto, destaca-se o facto de todas as personagens de “Fiesta” se basearem em seres humanos reais, amigos ou inimigos de carne e osso, companheiros do autor ou gente que com ele se cruzou nos anos em que todos, ou quase todos, eram muito pobres e muito felizes.

À semelhança do que acontece em “Brideshead Revisited”, de Evelyn Waugh (um autor e um livro que Hemingway decerto desdenharia), as personagens de “Fiesta” são identificáveis, não sendo o livro, de modo algum, um subtil roman à clef. Pior ainda, as personagens eram totalmente identificáveis na época, desde a heroína, Lady Brett Ashley (na vida real, Lady Duff Twysden), ao detestável (e fracassado) candidato a escritor Robert Cohn, que era, sem tirar nem pôr, Harold Loeb, filho de uma das duas famílias judias mais ricas de Nova Iorque, formado em Princeton, parceiro de Hemingway no ténis e noutras aventuras.

Sem pedir licença a ninguém, Ernest Hemingway fez entrar todos os amigos no seu romance de estreia – o que, diga-se, não foi particularmente bonito para os visados e despertou a incredulidade mesclada de fúria em muitos deles.

“No one was a better promoter of Hemingway than Hemingway”, diz Lesley Blume logo nas primeiras páginas deste seu livro. Talvez isso não faça dele um canalha, como é óbvio. Comparado com Brecht, por exemplo, Hemingway era um modelo de virtudes. O ponto não importa por ora nem sequer é para aqui chamado. Por agora, interessa apenas dizer que Lesley Blume fez inteira justiça ao livro épico de Ernest Hemingway, o que, diga-se, é um feito notável.

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