Como fabricar um défice

O governo conseguiu o menor défice orçamental dos últimos 40 anos. Está de parabéns. Mas se o número serve intentos políticos, não serve para mais nada, foi construído para Bruxelas ver.

Está de parabéns o Governo e em particular o senhor ministro das Finanças. Depois de ter sido tão criticado, interna e externamente, Mário Centeno conseguiu chegar ao final de 2016 e tirar da cartola o menor défice orçamental dos últimos quarenta anos. Segundo o próprio, e na esteira do que sempre afirmou o primeiro-ministro, sem plano B.

O número serve os intentos políticos do Governo. E, no imediato, até poderá favorecer a posição de Portugal no seio do Eurogrupo, permitindo ainda ao ministro das Finanças umas farpas dirigidas àqueles que o subestimaram. Mas, à parte disso, não serve para mais nada. E não serve, como os juros da dívida pública vão indicando, porque o menor défice dos últimos quarenta anos é na verdade um resultado fabricado. É um número construído para Bruxelas ver.

Mas atenção, vejam bem. Em 2016 Portugal terá crescido 1,3%, um crescimento que acabou por ser razoável, mas que foi bem abaixo da estimativa inscrita pelo Governo no OE2016 (1,8%). Um cenário macroeconómico que já então era inverosimilmente optimista e para o qual tantos irritantes chamaram a atenção.

Com a economia acostada a um ritmo de crescimento mais fraco, as receitas efectivas da administração pública ficaram naturalmente aquém do orçamentado (menos 1.800 milhões de euros, segundo o relatório de execução orçamental da DGO, anexo A2, divulgado na semana passada).

Para compensar, o Governo gastou menos 3.000 milhões de euros face ao que tinha para gastar. No investimento público menos 1.000 milhões. Em subsídios e transferências correntes entre entidades da administração pública, menos 800 milhões. Em outras despesas correntes menos 900 milhões. E noutras ainda, a diferença para os três mil milhões. Ou seja, menos crescimento, menos receita, menos despesa e menos défice. A álgebra diz-nos que menos com menos dá mais. Ora, não mais!

O Conselho de Finanças Públicas já avisara no seu relatório do passado dia 17 de Janeiro: “a composição e evolução das receitas e despesas subjacentes a esse défice [de 2016], bem como o cenário macroeconómico que lhe está associado, alteraram-se substancialmente ao longo do ano com respeito às previsões iniciais do Ministério das Finanças (…) Confirmam-se assim os riscos assinalados pelo Conselho das Finanças Públicas (CFP) e outras entidades, o que levou à adoção de medidas adicionais com vista a permitir cumprir o objetivo fixado para o saldo” (p. 6). Está à vista de todos.

Aliás, só o Governo permanece agarrado à retórica de não ter existido plano B. Na política, nunca dar mostra de fraco. Na presumível teorização do senhor primeiro ministro, como não existiu orçamento rectificativo, não terá havido plano B. Pois claro, façamos de conta.

Neste mundo de “pós-verdade” e de “factos alternativos”, escrevia há dias Adam Gopnik na “The New Yorker” [que] “fighting the lie becomes not simply more dangerous but more exhausting than repeating it”. Talvez tenha razão.

Mas afinal, recuperando os clássicos, para que serve um Orçamento do Estado (OE)? Num dos primeiros ensaios sobre a importância da reforma orçamental no sector público, William Willoughby (“The movement for budgetary reform in the States”, 1918) defendia o OE como um instrumento de Democracia, uma forma de relacionar a acção legislativa com a acção executiva. O OE seria assim o meio de afectação de recursos à governação, a fim de responsabilizar o executivo pela mesma. Seria a moeda de troca pela delegação de poder por parte dos legisladores ao governo.

Um século depois, os princípios normativos de Willoughby mantêm-se intactos enquanto esteios fundamentais da disciplina agora conhecida como “Public Financial Management”. Há hoje, como não poderia deixar de ser, muita inovação tecnológica e muita sofisticação técnica na forma como os governos gerem a conta do Estado, mas no fundo a conta do Estado é dos cidadãos. É aos cidadãos que têm de ser prestadas contas e, tendo em conta a natureza coerciva dos recursos que sustentam o OE – daí o termo anglo saxónico “appropriation” –, governo que não cumpra com o plano aprovado pelos parlamentares tem de ser especialmente escrutinado.

Em face de tudo isto, é sem hesitações que qualifico a execução orçamental de 2016 como um exemplo de más práticas. Da falta de transparência que resultou da opaca utilização (ainda não discriminada) das chamadas cativações orçamentais, e que em inglês vão pela muito sugestiva conjugação verbal “sequestering”.

Da incoerência revelada entre as políticas anunciadas (“virar a página da austeridade”) e os cortes implementados, que fizeram do investimento público e do racionamento de “cash” peças fundamentais da consolidação orçamental.

Da dificuldade de controlo da acção governamental, e das críticas da UTAO e do Conselho de Finanças Públicas (este último sempre na mira dos deputados da maioria e várias vezes rebaixado, lamentavelmente também pelo Presidente da República).

Aconteceu quase tudo o que não deveria ter acontecido. Note-se que aqui não estou a analisar os resultados da execução, alguns foram bons, outros foram maus; aqui, estou apenas interessado no processo da execução que, insisto, defraudou os pilares conceptuais do que deveria ser o exercício orçamental numa democracia avançada. Eu sei, quem não tem cão caça com gato. Mas enfim.

Evidentemente, no final do dia, há metas a cumprir pelo que contam os resultados. E neste domínio, como já se escreveu, o executivo cumpriu. O bom do PERES, “in extremis”, até permitiu ao Governo dar uma pantufada nos pagamentos em atraso, que tinham aumentado com alguma expressão ao longo do ano, colocando o saldo de atrasados há mais de 90 dias abaixo do registado no final de 2015 (ainda que acima do zero, onde um Estado decente os deveria ter). Esta cereja no topo do bolo, este retoque final, foi Centeno versão Maquiavel. Mas nem o príncipe florentino seria capaz de dar a volta à dívida pública, que aumentou uma vez mais (em 10 mil milhões de euros) para um nível recorde. E é precisamente este contrassenso, o menor défice orçamental dos últimos quarenta anos e uma dívida pública recorde, a par de incontáveis rábulas do Governo no que toca ao défice estrutural, um verdadeiro jogo do gato e do rato com Bruxelas – um gato que também não parece interessado em apanhar o rato – que levanta dúvidas e que nos remete novamente para o processo orçamental.

O mesmo se dirá das despesas que em 2016 foram metidas no congelador e que em breve alguém irá querer tirar do mesmo. As autárquicas, não tarda nada, estarão aí à porta. E a política trata sobretudo de adquirir votos. Fabricar um segundo défice seria obra.

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