Camarão da Ilha

Roteiro lírico e sentimental da vida breve de Camarón de la Isla, um dos mais geniais cantores de flamenco de todos os tempos.

Como acontecerá a todos nós, José Monje Cruz nasceu e morreu. No intervalo, tornou-se um dos mais célebres e geniais cantautores de flamenco de todos os tempos, com o nome artístico Camarón de la Isla (ou apenas Camarón). José viu o mundo em San Fernando (“La Isla”), Cádiz, em 1950, e morreu em Barcelona a 2 de Julho de 1992. Tinha 41 anos. Cancro do pulmão. O caixão baixou à terra envolto na bandeira cigana.

Este livro de Carlos Lencero (1951-2006), intitulado “Sobre Camarón. La leyenda del cantautor solitário”, é a melhor e mais completa biografia de Camarón que conheço. Desengane-se, porém, quem julgue que vai encontrar aqui histórias sórdidas ou pormenores escabrosos sobre a agitada existência terrena de Camarón de la Isla, as suas múltiplas dependências, a derrocada previsível, o estertor agonizante ao fim de uma vida de excessos e drogas. Carlos Lencero privou de perto com o génio, foi seu companheiro, sendo letrista das músicas de vários nomes lendários do flamenco, desde o próprio Camarón até Pata Negra, Raimundo Amador, Macanita, Remedios Amaya e Diego Carrasco. O livro é íntimo, não indiscreto. E, já que falamos de grandes nomes, o flamenco e a canção espanhola têm trazido ao mundo uma onomástica sensacional, com rapazes e moças com alcunhas artísticas como Pansequito, Dolores Vargas La Terremoto, Tomatito, El Tumba, La Moreno, Chocolate, Niño Ricardo, Kiko Veneno, Pepe Ébano ou, atenção, Ramón el Portugués.

Neste panteão ilustríssimo, a voz de Camarón destacou-se, imortal e potente, límpida e única. A ponto de alguns dizerem, com apoio no douto parecer de médicos otorrinolaringologistas, que a sua garganta tinha uma configuração peculiar, quase feminina.

Quem diria… num macho gitano que começou a vida querendo ser toureiro: a primeira vez que se viu numa arena, em vez de um novilho pluma apareceu-lhe pela frente uma besta negra de 400 quilos; apavorado, Camarão buscou novo rumo, indo parar quase por acaso ao universo da música e das canções gritadas. Me dieron una ocasión / de salir a torear; / se me quitó la afición – cantaria, anos depois. Nessa altura da vida, quando se fez grande e célebre, afundou-se no álcool (aguardente, whisky com muito gelo, litros de cerveja Cruzcampo) e nas drogas, desde o LSD, típico da altura, à letal heroína (a «droga heróica», porque supostamente curava a tuberculose), passando pelos barbitúricos e, claro, as doces ervas importadas do Rif.

Os seus biógrafos dizem que a voz excelsa se começou a notar muito cedo, por volta dos oito, doze anos. Pela escola passou pouco, tendo uma estadia fugaz num estabelecimento dos Padres Carmelitas onde o ciganito loiro era obrigado a entrar pela porta das traseiras, já que a da frente só dava acesso aos alunos que pagavam propinas. Criou-se nas ruas, começou a cantar às noites, ao princípio na Taberna Flamenca, em Málaga, e depois, na companhia de Dolores Vargas (“la Terremoto”, já atrás falada), com quem firmou contrato para um tour por Espanha e pela restante Europa.

Em 1968 grava pela primeira vez em estúdio e, por essa altura, muda-se para Madrid, a capital fatal. Já ao tempo cobrava um bom cachet, coisa de duas mil pesetas diárias, segundo dizem (outras opiniões camaroeiras elevam a fasquia para quatro mil pesetas).

Em definitivo, tinha baraca, um termo indefinível da gíria flamenca, originário de Marrocos, com passagem pelos acampamentos gitanos. Carisma? Dom divino? É impossível definir baraca, mas Camarón de la Isla tinha-a aos molhos, para dar e vender. Ele e, claro, Paco de Lucía, o “filho da portuguesa” nascido em Algeciras em 1947, que se cruza desde cedo na vida do Camarão da Ilha. Juntos, gravam nove discos, ambos a crescer a cada dia, até que os destinos de ambos se separaram, sem zangas nem maledicências.

Atesta-o o facto de Paco de Lucía ter sido um dos que, no fatídico dia, carregou às costas o féretro embrulhado na bandeira cigana. E este livro de Carlos Lencero é também, a seu modo, uma biografia breve do génio da guitarra, ainda que sobre ele existam melhores e mais desenvolvidos materiais, como o maciço volume, de quase 500 páginas, «Paco de Lucía. El Hijo de la Portuguesa», de Juan José Tellez (Planeta, 2015).

Não por acaso, o primeiro disco de Camarão, produzido em 1968 e saído em 1969, chama-se “El Camarón de la Isla con la colaboración de Paco de Lucía”, a prova irrefutável da irmandade indestrutível, que se manterá até à morte (curiosidade: na infância, Paco sonhava ser cantor, sendo seu pai que, com notável clarividência, o levou às cordas).

Entretanto, Camarón casou. Aos 25 anos de idade, com Dolores Montoya, “La Chispa”, da qual teve quatro filhos (teve uma outra filha nascida de uma anterior – ou paralela – ligação amorosa). A mulher sempre o considerou um marido exemplar, opinião que o seu biógrafo e amigo não acompanha na totalidade, dizendo que Camarón nunca abdicou das prerrogativas e privilégios que a cultura cigana concede aos varões. Por exemplo, ausentava-se subitamente de casa, sem dizer palavra, por uma, duas semanas. Andava na farra por Madrid, Barcelona ou noutras paragens onde se cultivava o flamenco. Em 1975, foi galardoado com o portentoso Prémio Nacional da Cátedra de Flamencologia de Jerez (!).

O seu período áureo será, talvez, a década de 80, entre Madrid e Sevilha. É no Bairro de Triana, ou por lá perto, que Camarão se expande até ao infinito. Quem quiser saber um pouco mais, numa breve mas esclarecedora incursão pela vida sevilhana do Camarão, leia o fantástico e extraordinário livro “Fantasmas de Espanha”, de Gilles Tremlett, que até foi cá editado pela Alethêia e está à venda, pasme-se, por cinco euros (!), ou lá perto.

Sendo um homem medularmente espanhol, Camarón teve uma carreira internacional apreciável, primeiro na Camarga francesa, depois no Festival de Jazz de Montreux e até em Nova Iorque. Em 1988, actuou em Paris, no Cirque d’Hiver, com bilhetes a 200 francos e fila à porta. Em 1990, causaria sensação na Grande Maçã. Mas, quando lhe perguntaram se iria instalar-se na cidade e fazer carreira pelas Américas, disse, tão-só: “En Manhattan no hay pescaíto frito”. Camarão não era um bom garfo, longe disso, mas ficava doido com pescaíto frito, entre outras drogas duríssimas.

A sua obra-prima, numa vasta discografia, será, porventura, “La leyenda del tiempo”, que, como é costume, a crítica da época não apreciou nadinha. Mas foi um disco revolucionário, em vários sentidos, começando pelo facto de se tratar da primeira gravação da História da Humanidade em que os batedores de palmas, os palmeros, ganharam uma quantia igual à dos cantores e guitarristas.

Fica para a memória, Camarón de la Isla, a lenda do tempo. De cabelos longos e barba desgovernada, assemelhava-se a Cristo, sem tirar nem pôr. Morreu numa clínica de Barcelona, em 2 de Julho de 1992, o ano da Expo de Sevilha e doutros desvarios. No funeral, era tanta gente, tantos políticos engravatados, que a viúva e os filhos quase foram esquecidos.

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