A história de uma mentira

A história da correspondência entre António Domingues e Mário Centeno revelada pelo ECO não deixa margem para dúvidas sobre o acordo à medida que levou o gestor à presidência da Caixa.

Mário Centeno mentiu, por ato e omissão, quando negou a existência de um acordo com António Domingues para o dispensar da obrigação de entrega da declaração de rendimentos e de património no Tribunal Constitucional? Vamos aos factos:

Toda a documentação que o ECO revelou em exclusivo relativa à troca de correspondência entre o gestor e o ministro das Finanças, mas também do advogado Francisco Sá Carneiro com o secretário de Estado Mourinho Félix, com o envolvimento de serviços das Finanças apontam no mesmo sentido. Domingues só aceitaria o convite para a CGD se as regras da Caixa permitissem uma posição concorrencial com a banca privada, e que teria de se traduzir em dois pontos essenciais, além dos que estão diretamente relacionados com a capitalização:

  1. A remuneração teria de ser competitiva com a do setor financeiro privado.
  2. A gestão deveria estar protegida da publicitação e transparência decorrentes da entrega da declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional.

Todas as missivas, emails e cartas, permitem perceber a negociação para mudar dois diplomas, o que excluía a CGD do Estatuto do Setor Empresarial e o que tirava a gestão da Caixa das regras do Estatuto do Gestor Público. Tudo foi feito neste sentido, como provam as cartas. O advogado de António Domingues até se deu ao luxo de propor uma redação de decreto-lei ao secretário de Estado para acomodar esses objetivos. Leis à medida, até a pedido, para corresponder às condições de Domingues. É o Estado no seu melhor, o uso de um poder à medida do interesse de cada um e, sejamos justos, não é um problema de Centeno, nem de outros ministros noutros casos, e um problema nosso, que o tolera.

Resultado: António Domingues aceitou ser presidente da Caixa e convidar uma administração inteira com base neste acordo.

Neste processo, só tenho uma dúvida: estas mudanças legislativas deixaram de fora uma lei de 83 que obriga os que estão em funções públicas, como é o caso dos gestores em empresas controladas pelo Estado. Foi por desconhecimento da existência dessa lei ou foi por omissão deliberada porque sabiam que essa era uma matéria que não passaria despercebida e, por isso, de difícil aprovação à Esquerda e à Direita? Qualquer das duas possibilidades é má.

A carta de António Domingues a Mário Centeno no dia 15 de novembro em que revela, preto no branco, a existência do acordo é ‘apenas’ a última das provas. Portanto, apesar de não existir uma declaração explícita do ministro das Finanças sobre o Tribunal Constitucional, há uma história de negociação que não deixa margem para dúvidas e que permite formar a convicção de que Centeno acedeu aos pedidos de Domingues. Pior, fica evidente também que deixou cair o gestor quando foi claro que a lei de 83 tornava o acordo inviável.

António Costa, ontem, no Parlamento, fez uma coisa feia: para proteger Centeno, acusou implicitamente António Domingues de mentir quando escreveu, na carta de dia 15, que tinha um acordo com Centeno. Mas essa afirmação não é suficiente para reescrever esta história.

Há quem siga outra estratégia, quem considere que este não é um tema relevante para o país, que compromissos de um governo em nome do Estado perante terceiros é coisa de somenos, como defendeu o jornalista André Macedo em artigo de opinião no DN. Foi tudo uma ingenuidade e, agora, isso não interessa para nada. Concordamos em discordar. É mais importante o défice, e “o talento e o esforço de Centeno” merecem pouco menos do que uma estátua. “Reconhecer o talento, à Esquerda e à Direita, é cumprir os mínimos jornalísticos”. Mau Maria… Mas é isso que está em causa? Ou esta desvalorização da carta secreta é, isso sim, não cumprir os mínimos jornalísticos? O diretor adjunto da RTP – que mudou de opinião sobre a sua privatização quando entrou na televisão pública – põe em causa o tratamento jornalístico daquela carta e escreve até que “foi parcialmente revelada e cirurgicamente editada”. Não foi, André Macedo não leu, ou não quis ler, o que o ECO publicou. É o que parece. Ficam aqui os respetivos links: “Carta secreta de Domingues compromete Centeno” e “A carta secreta de Domingues a Centeno analisada à lupa”. Aqui, trabalhamos para os leitores.

A transparência, nesta linha de argumentação do diretor-adjunto da RTP, não interessa para nada. Não vamos alimentar a transparência, o que interessa é a forma, não é a substância, é a grande equipa que se perdeu, não é o acordo do ministro das Finanças com António Domingues. A defender um certo Portugal que, pelos vistos, não deve ser exigente com um ministro. Seja com Mário Centeno, seja com os seus antecessores. Também há emails de Maria Luís Albuquerque sobre o caso dos swaps. E, à data, era o PS a acusar a ministra de mentir no Parlamento. Esses eram importantes, estes não são?

Tudo somado, Mário Centeno mentiu por ato e omissão. Alguém tem dúvidas (além de André Macedo)?

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