A esquizofrenia portuguesa

José Miguel Júdice analisa, no Jornal das 8 da TVI, as causas de mais uma tragédia, desta vez em Tondela. E o que aí vem com a liderança de Rui Rio no PSD.

A tragédia de Tondela é a repetição da tragédia que é o Estado português. A única forma que conheço de respeitar os mortos é olhar, de frente e sem medo, para o que causou as suas mortes.

Os factos já são mais do que evidentes: o edifício da associação recreativa em Tondela era uma bomba de napalm, não estava licenciado (ou não o podia ser nas regras atuais), não foi vistoriado para utilização, não tinha saídas de segurança, etc. E, no entanto, o Estado tem regras tão detalhadas que chegam ao ponto de obrigar, mesmo que os proprietários não o desejem, a ter fios de ligação nas paredes que permitam televisões em todos os quartos das habitações. Os exemplos de absurdas regulamentações são tantas que poderia estar aqui horas a falar disso.

Mas o mesmo Estado que cria estas regras enlouquecidas não se preocupa em aplicar as regras essenciais, sobretudo se, como li, se tratar de obra feita “com o voluntarismo dos seus sócios”, ou porque (diz o Presidente da Liga dos Bombeiros) com as associações populares “se facilita sempre um pouco”, e que se a legislação não é cumprida é (sic) “por falta de esclarecimento”.

Só há uma palavra para isto: “Estado esquizofrénico”: Legislação exagerada e burocrática, por um lado, tolerância quase total com o seu não cumprimento no que tem de essencial, pelo outro. Punir pela falta de toillete para deficientes na loja da Ginginha no Rossio e deixar sem exigência ou controlo o que existia em Tondela.

Isto é culpa deste Governo nacional ou desta vereação de Tondela? Meu Deus, não! Isto é culpa da cultura dominante em Portugal ao longo de séculos: Tudo é proibido e (quase) tudo é tolerado – as leis são de âmbito nacional apenas às vezes – os regulamentos aplicam-se conforme calha e “facilita-se” sempre que convém, etc. etc.

Como sociedade não queremos enfrentar este nosso gravíssimo defeito de carácter, por isso, incêndios como os deste Verão, roubos de armas como os de Tancos, mortes como as de Tondela, continuarão a conviver serenamente com a exigência de toilete para deficientes na Ginginha.

O PSD no seu labirinto

Há semanas, perguntei para que serve o PSD. Há duas respostas claras e simples:

  • Serve para ser o líder de um bloco alternativo de direita ao PS (sendo este último o líder do bloco de esquerda).
  • Serve para ser o partido da coligação natural com o PS (ora liderando um, ora liderando o outro).

Pelo menos desde 1978, para Sá Carneiro o PSD passou a ser o líder de um bloco alternativo (apesar de, taticamente, antes da AD em 1979, ter retoricamente feito propostas ao PS), sei do que falo porque vivi tudo isso muito próximo dele.

O contrário era defendido pelo chamado grupo das “Opções Inadiáveis”, que abandonou com estrondo o PSD, dividindo a meio o seu grupo parlamentar em Junho de 1978. Os Inadiáveis falavam (como Rui Rio) na matriz social-democrata, e queriam a filiação na Internacional Socialista.

O PSD, esse, tem oscilado sem se definir. Como com a ASAE na loja da Ginginha – uma grande exigência teórica de ideologia social-democrata (por vezes indo até ao “patrulheirismo”). Como em Tondela, “facilitando” – um total laxismo prático -, adesão à Internacional de Direita moderada onde coabita com o CDS. Com posições políticas de direita em matérias como o aborto e outras causas fraturantes, pendor estatizante de matriz “salazarista” (“na base finanças sãs”).

Estou à vontade no que digo, porque não me revejo na visão direitista do PSD, mas desde há mais de 40 anos que defendo a bipolarização liderada pelos partidos moderados de cada um dos lados. Por isso me felicitei com a opção de António Costa.

E agora, a habitual pergunta: Porque é que Rui Rio ganhou? Não digo que não haja muitos fatores (como por exemplo o receio de que Santana Lopes não conseguisse nos debates futuros libertar-se de 2004), mas há um que foi decisivo: Os ‘laranjinhas’ acham que o PS vai ganhar em 2019 e não querem ficar mais quatro anos na oposição. Marques Mendes, bom conhecedor da casa, falou com sinceridade, o que é sempre de louvar quando acontece.

Por isso é que estas eleições repetem de novo os temas de 1978, desta vez os Inadiáveis não sairiam do PSD. Desta vez, quem sairia era Sá Carneiro, que, aliás, nos meses antes de morrer pensava seriamente nisso.

Rui Rio, afinal, conhecia melhor o partido do que Santana Lopes. Esteve sempre a dizer que apoiaria um governo minoritário do PS, se necessário. Ele sabia que era isso que o novo PSD, afinal, deseja, desde logo porque todos acham que vão perder as eleições de 2019 e não querem ficar de fora do Estado tanto tempo. E Rui Rio recebeu um claro mandato para viabilizar um governo do PS, com o sonho de matar a bipolarização rumo ao bloco central. Isso é um importante facto que o distingue do meu querido amigo e professor Mota Pinto, que criou o bloco central com o PS, apenas por achar que assim deveria e tinha de ser.

Que tudo isto seja agora uma ilusão, pouco importa. Realmente, o mais provável é até que o PS ganhe com maioria absoluta, e o PS já percebeu (veremos a esse propósito o que se passa na Alemanha, de que falarei após o Congresso do SPD do próximo fim de semana) que aliar-se à direita será deixar de ser o grande partido central do sistema político português (o mais próximo que podemos ter de um partido hegemónico).

O problema é que um PSD esquizofrénico num Estado esquizofrénico é demais. A desagregação do PSD é mais provável do que muitos pensam. Sobretudo se, todo contentinho…, conseguir “vender a alma ao diabo”… Vamos esperar para ver.

O Pacto da Justiça

É curioso comparar a visibilidade que teve o Congresso da Justiça e o Pacto que, por unanimidade, foi assinado em 2003 com o que se passou agora. Também aqui sei do que falo, pois esse foi o principal tema do meu mandato de Bastonário.

Louvo a iniciativa e, sobretudo, a criação da “plataforma permanente da Justiça”, para continuar o diálogo das profissões. Foi o que fizemos em 2004, mas quando acabei o meu mandato tudo o que se estava a tentar foi morto. Louvo o resultado – ele demonstra que continua a ser verdade que é mais o que une os profissionais da Justiça do que aquilo que os separa.

Mas, também sinceramente, soube-me a pouco. Não há uma visão estratégica para a reforma da Justiça e da Cidadania, não há um questionamento das causas do estado da justiça em Portugal, tudo se resume a medidas avulsas, de um modo geral corporativas, quando não sindicais.

Há de facto um grande ausente deste Pacto: O cidadão-consumidor. Há 14 anos, o 1º (e único…) Congresso para a Justiça e para a Cidadania (o nome era um programa) aprovou muitas medidas concretas, mas também aprovou, por unanimidade repito, a “Declaração de Princípios” que continua atual e deveria estar neste novo Pacto.

Esperemos que venha, a seguir, o verdadeiro Pacto e não apenas um “cahier de doléances”, cujo mérito se reconhece em todo o caso.

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