“Próxima crise pode vir do elevado endividamento ou do protecionismo exacerbado”, diz Faria de Oliveira

Elevados níveis de dívida, "protecionismo exacerbado" e a fragmentação do sistema partidário europeu, que dificulta a governabilidade, poderão motivar uma nova crise, considera o presidente da APB.

Onde estava quando o Lehman Brothers faliu? Fernando Faria de Oliveira era presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD) e foi com “surpresa, choque e natural preocupação” que recebeu a notícia de que o banco norte-americano tinha declarado falência. Passaram-se dez anos em que o redesenho do quadro regulatório e dos modelos de governação estiveram no centro das atenções para que se evitasse uma nova crise, mas o esforço pode cair em saco roto. Os elevados níveis de endividamento, aliados a um “protecionismo exacerbado”, por um lado, e a fragmentação do sistema partidário europeu, que põe em causa a “governabilidade”, por outro, poderão levar a uma nova crise.

Ao dia 15 de setembro de 2008 seguiu-se uma avaliação ao impacto que este colapso poderia ter sobre o banco público português. “Como se constatou, os efeitos principais foram os relacionados com a perda de confiança nos mercados, a desvalorização das carteiras de ativos financeiros inerente à queda dos mercados e a crescente dificuldade no financiamento dos bancos, devido ao fecho do mercado interbancário”, recorda o antigo banqueiro.

Os efeitos principais foram os relacionados com a perda de confiança nos mercados, a desvalorização das carteiras de ativos financeiros inerente à queda dos mercados e a crescente dificuldade no financiamento dos bancos, devido ao fecho do mercado interbancário.

Fernando Faria de Oliveira

Presidente da APB

A reduzida exposição a ativos tóxicos, tanto da CGD como dos restantes bancos nacionais, permitiu que a banca em Portugal demonstrasse “grande resiliência”, conseguindo um “desempenho claramente superior à da maioria dos outros Estados-membros da União Europeia”.

Mas o pior estava para vir, e chegou com a crise da dívida soberana. “Em Portugal, não tivemos uma crise bancária que originou a grande recessão económica, como aconteceu noutros países, mas o inverso: foi a recessão provocada pela crise da dívida soberana que afetou o nosso sistema bancário“.

O cenário por cá foi agravado, na visão de Faria de Oliveira, pelo facto de a linha de 12 mil milhões de euros, disponibilizada no âmbito do programa de assistência financeira para recapitalizar os bancos, só ter sido utilizada pela metade. Houve um problema de capitalização agravado pelos níveis de crédito malparado, problema arrastado pelo “prolongamento da recessão e a morosidade no tratamento judicial e fiscal das insolvências e da reestruturação da dívida”.

A “moda da desregulação e da desregulamentação”

Se há coisa que se aprende em tempos de crise, é a “promover medidas corretivas e preventivas de novas situações que as propiciem”. E, para o presidente da APB, “são muitas as lições” que se retiram desta crise que faz agora dez anos.

Desde logo, ficou evidenciada a “moda de desregulação e desregulamentação” que se vivia, bem como a “abordagem de supervisão pouco intensa e intrusiva, que se revelaram manifestamente insuficientes para precaver choques adversos”.

Hoje, considera, “o novo quadro regulatório que se construiu na Europa é muito mais exigente em termos de requisitos de capital, de liquidez, de alavancagem, bem como no que respeita aos mecanismos instituídos para a gestão de crises e aprofundamento do governo das instituições bancárias, incluindo os modelos de controlo interno, a gestão do risco e as questões comportamentais”.

O pós-crise veio revelar que várias debilidades existiam, mas que a elevada rentabilidade dos bancos e os baixos níveis de incumprimento do crédito não permitiam que fossem evidentes.

Fernando Faria de Oliveira

Presidente da APB

No caso específico da banca nacional, ficou claro, mais tarde, que “várias debilidades existiam, mas que a elevada rentabilidade dos bancos e os baixos níveis de incumprimento do crédito não permitiam que fossem evidentes“. O presidente da APB destaca as “insuficiências de governance, modelos de controlo interno e de fiscalização pouco desenvolvidos, gestão de risco, ainda que prudente, procurando acomodar a realidade empresarial nacional (caracterizada pela descapitalização e elevado endividamento das empresas) e a política económica prevalecente”.

Ao mesmo tempo, aponta, eram descurados “mecanismos preventivos para enfrentar choques adversos no que respeita a almofadas de capital e provisionamento anticíclicos”.

Dez anos depois, endividamento pode motivar nova crise

A crise de 2008 serviu também para reforçar que “desequilíbrios macroeconómicos acentuados redundam sempre (ou agudizam) em crises económico-financeiras e em custos económicos e sociais muito pesados para o cidadão comum, quando deles resulta a necessidade de adotar medidas de estabilização e recuperação”.

Mas a lição parece não estar aprendida. “Dez anos depois da crise, o endividamento continua a aumentar (a dívida pública nas economias avançadas, em grande parte graças às compras de dívida pelos bancos centrais, aumentou em mais de 30% do PIB e regista-se uma aceleração da dívida nos mercados emergentes, que constitui risco preocupante)”.

É neste cenário que “vários especialistas consideram que uma próxima crise pode decorrer deste elevado endividamento, do setor imobiliário (mesmo que indiretamente), do protecionismo exacerbado ou do sistema financeiro não regulado”.

O presidente da APB frisa, assim, aquela que deveria ser a prioridade de governos e reguladores: “Devem existir, em tempos de bonança e de crescimento económico, preocupações de almofadas orçamentais anticíclicas, para precaver crises futuras”.

Desconfiança fragmentou Europa. “Governabilidade” é ameaçada

Há um último impacto que resulta da crise de há dez anos e que vem agora fazer estragos. A desconfiança gerada entre o “cidadão comum” podia parecer um fator menor, mas a consequência não é de ignorar. “Os pesados custos económicos para o cidadão comum, com a perda ou estagnação de rendimentos e situações de desemprego, provocaram uma onda de descontentamento e uma erosão na confiança nos governos, nos partidos políticos tradicionais, nas instituições e nos bancos, por descrença nas suas capacidades de resolver a situação”.

O resultado? “Vem-se registando uma alteração estrutural no sistema partidário na Europa, que surge cada vez mais fragmentado, dificultando a governabilidade das nações“.

Uma banca mais “apetrechada”, mas não o suficiente

Se é certo que o processo de ajustamento por que os bancos passaram nos deixou mais capitalizados e com níveis de solidez mais confortáveis, é certo também que o caminho não está feito. “Os bancos nacionais estão muito mais capitalizados, mais sólidos, mais eficientes, com confortáveis rácios de liquidez e de alavancagem”, considera. Ao mesmo tempo, os bancos “têm vindo a desenvolver modelos de negócio ajustados às novas realidades, nomeadamente à digital, e aos interesses dos clientes”, para além de estarem agora sujeitos aos “muito exigentes e diversificados requisitos regulatórios e de supervisão”.

Paralelamente, aponta ainda o presidente da APB, “a governação dos bancos foi objeto de aprofundamentos significativos”.

Mas não está livre de perigo. “O setor tem ainda que melhorar, nomeadamente, os seus níveis de rentabilidade, e completar o processo de redução dos non-performing loans [crédito malparado], promover os avanços digitais e melhorar a reputação”. O crédito malparado em Portugal representava, no final do ano passado, 13,3% do total de crédito concedido, o que, ainda assim, representa uma redução significativa face ao pico de 17,5% registado em 2015.

Resumindo, “o sistema bancário está bem mais apetrechado e tem mais defesas, mas o trabalho em curso de reforço, modernização e eficiência dos nossos bancos prossegue”.

Quando, à meia-noite do dia 15 de setembro de 2008, os jornais portugueses foram para as bancas, já era conhecido o desfecho do Lehman Brothers. Embora o banco só viesse a dar entrada na justiça norte-americana com o processo de falência às primeiras horas da manhã desse mesmo dia (hora de Portugal), as autoridades norte-americanas já tinham feito saber, no dia anterior, que iria cair. Na reunião que decorria na Reserva Federal de Nova Iorque desde o dia 13 de setembro, o banco central norte-americano decidiu que não iria resgatar o Lehman. Ben Bernanke, então presidente da Fed, e Henry Paulson, na altura secretário de Estado do Tesouro dos Estados Unidos, argumentaram que o volume de ativos tóxicos do Lehman era de tal forma elevado que tornava o resgate impossível.

Ninguém diria isso, ao olhar para as capas dos principais jornais portugueses dessa segunda-feira. O Diário de Notícias dava destaque ao poder de compra dos funcionários públicos, que tinha sido reduzido em 7% na última década. O Jornal de Negócios escrevia que as rendas iriam aumentar acima da inflação em 2009, com uma atualização de 2,8% para os contratos de arrendamento celebrados após 1990. Já o Público noticiava que Manuel Boa de Jesus, chefe da missão portuguesa aos Jogos Olímpicos, era suspeito de uso irregular de verbas, enquanto o Correio da Manhã apontava que, ao final do primeiro ano da reforma das leis penais, havia mais crimes e menos presos.

Foi só no dia 16 que o assunto marcou, finalmente, as primeiras páginas dos jornais portugueses. “Lehman Brothers. Uma falência que anuncia outras”, escrevia o Público. “Falência na América sobe juros cá”, antecipava o Correio da Manhã. “A pior crise desde 1929”, classificava o Diário de Notícias, descrevendo a “nova onda de coque sobre a economia mundial. O Jornal de Negócios resumia as reações de banqueiros e empresários à falência do Lehman Brothers: “Furacão financeiro sem fim à vista”.

Nesse dia, os efeitos da crise financeira que acabava eclodir já eram evidentes. A desvalorização das bolsas de Nova Iorque foi a maior desde o 11 de setembro de 2001, os juros das dívidas subiram, os preços do petróleo também derraparam. Enquanto os mercados nacionais eram arrastados pelo que se passava lá fora, previa-se um aumento das prestações do crédito à habitação em Portugal.

O desenvolvimento da rede ferroviária nos EUA foi o gatilho que levou o Lehman Brothers a apostar no negócio da transação de valores mobiliários quando, antes, era apenas conhecido pela negociação de matérias-primas. O culminar desta estratégia deu-se em 1887, quando o Lehman Brothers entrou na bolsa de Nova Iorque, de acordo com informações da Universidade de Harvard. Basicamente, o Lehman Brothers interpretou a tendência do mercado e acabou por seguir as pegadas do Kuhn Loeb & Co., uma das principais bancos de investimento a subscrever obrigações para o desenvolvimento da ferrovia. O Lehman Brothers tornou-se, assim, um player nos serviços de corretagem e, um século depois, o Lehman Brothers acabou por adquirir o Kuhn Loeb & Co.

Foi há 10 anos que o Lehman Brothers colapsou. O dia 15 de setembro marca simbolicamente o início da maior crise financeira dos últimos 80 anos. ‘Onde estava quando o Lehman faliu?’ é uma rubrica diária, de 1 a 15 de setembro, onde empresários, banqueiros, políticos, economistas e advogados dizem ao ECO como viveram a queda do banco e o que aprendemos com a crise.

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