Miguel Cadilhe: Entrada no Montepio “é um gravíssimo desvio de natureza” da Santa Casa

Em entrevista ao ECO, o ex-ministro das Finanças critica o negócio entre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e o Montepio. Para Cadilhe, o atual Governo reformou pouco o sistema financeiro.

Após a recapitalização da CGD, a reorganização acionista do BCP, a conclusão da venda do Novo Banco e a venda do BPI, o sistema financeiro português discute ainda a injeção de dinheiro no Montepio. A possibilidade mais forte em cima da mesa passa pela entrada da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no capital do banco, hipótese criticada por Miguel Cadilhe, que foi presidente do BPN antes da nacionalização do banco. Em respostas escritas ao ECO, o ex-ministro das Finanças considera que o atual Governo pouco fez para reformar o sistema financeiro, assim como para acelerar o crescimento económico. Para Cadilhe o mérito é dos empresários e da conjuntura externa.

De quem é mérito dos bons resultados económicos?

O mérito é sobretudo das empresas e da procura externa, evidentemente. E é mérito também do “momento de viragem” da curva conjuntural, que é um movimento natural e quase mecânico, numa curva em “U” após tempos duros e forçados. O Governo pode ter contribuído em alguma coisa, ao gerar expectativas de otimismo, isso vale o que vale, mas, inversamente, não ajudou com a política de impostos sobre as empresas, nem com o baixo teor reformista.

Considera que Mário Centeno deveria apostar numa política económica contra cíclica? O atual rumo é insustentável?

Todos sabemos que a insustentabilidade cria as suas próprias soluções, se não houver quem as lidere. Há um ponto de auto-inflexão ou de autorregeneração, em que isso acontece, é claro que por vezes não são soluções de gradualismo. Na nossa circunstância, seguramente que Centeno enveredará pela política orçamental anticíclica se e quando a economia estiver perto do pleno-emprego e se então continuar a crescer. Portanto, nessa altura, Centeno procurará evitar o expansionismo da economia, estou certo disso.

Quanto à aproximação ao pleno-emprego e ao desemprego natural, estamos ainda um pouco longe disso. Parece que há sinais de escassez em alguns segmentos do mercado de trabalho não indiferenciado, ouço empresários a dizê-lo, mas ao mesmo tempo sabemos que estatisticamente o desemprego jovem é elevado. Há aqui um desencontro qualquer. Seria bom se o estudássemos a par do efeito da emigração.

Concorda com o que o atual Governo fez para resolver os problemas da banca?

Discordo de algumas coisas, por exemplo, a solução do Banif, em finais de 2015. Na CGD, o Estado foi acionista como lhe cabe, mas com alguns percalços. Na supervisão financeira, o Governo encomendou um relatório de reforma, entregue há quase um ano, não se sabe dele. O Governo pouco fez como reformador do sistema financeiro, talvez pouco mais possa fazer do que acolher as imposições europeias. Entretanto, os bancos fizeram parte do trabalho de casa, digamos tradicional, suponho que o fizeram bem, e agora estão a enfrentar um novo desafio de ordem estratégica, que não é fácil: a banca digital e a concorrência dos fintech.

Se estivesse em funções a atual senhora Procuradora-Geral a lei não teria ficado inconsequente, a esse nível de apuramento de responsabilidades.

Miguel Cadilhe

Ex-ministro das Finanças

Por outro lado, estou em crer que os bancos e o banco central aprenderam as lições da experiência. Nomeadamente as lições das imperdoáveis falhas de supervisão que se arrastaram por uma dezena de anos, desde os fins do século passado, e deflagraram faz agora outros dez anos, foi em 2008. As detonações e os estragos de milhares de milhão de euros estenderam-se até hoje e até ver. Defendi que as instituições da República, no caso a PGR, deveriam ter chamado os supervisores bancários da época, os de agora nada têm a ver com isso, à responsabilidade perante a lei. Também eles, não só os banqueiros. Havia indícios de incúria e negligência da supervisão, é o mínimo que se pode afirmar.

Julgo poder dizer que se estivesse em funções a atual senhora Procuradora-Geral a lei não teria ficado inconsequente, a esse nível de apuramento de responsabilidades. Houve comissões parlamentares de inquérito, mas esse é outro tabuleiro. Deixe-me perguntar-lhe: viu algum supervisor bancário responder judicialmente pelas enormes perdas tangíveis e intangíveis da economia, do sistema bancário e da República? Eu não vi.

Há a hipótese da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa entrar no capital do Montepio. Concorda?

Não, não concordo, não o faria de modo nenhum. Não o faria se estivesse em qualquer um dos lados, na SCML, no Governo, no BdP. É um gravíssimo desvio de natureza e de fim. Se o fizerem e se correr mal, poderá ser exigida responsabilidade por negócio temerário, desproporcionado, extravagante relativamente ao escopo estatutário e legal da SCML.

O crédito malparado continua a pesar nos balanços dos bancos. Ainda assim, o pior já passou para o setor bancário?

Vai a meio da viagem e o vento sopra de feição.

Vê sinais preocupantes na atual aceleração da concessão de crédito, tanto do lado das famílias como dos bancos?

Sim, confesso a minha preocupação, não a escondi em vários momentos, mas vejo que o BdP acaba de anunciar algumas medidas de contenção, um primeiro passo que vai no sentido certo.

Se o [negócio do Montepio] fizerem e se correr mal, poderá ser exigida responsabilidade por negócio temerário, desproporcionado, extravagante relativamente ao escopo estatutário e legal da SCML.

Miguel Cadilhe

Ex-ministro das Finanças

Chegou a propor um imposto de 4% sobre a riqueza líquida para pagar a dívida pública. Propôs também uma “renegociação honrada” com a UE. Concorda com o que está a ser feito pelo atual Governo?

O imposto “one shot” que propus no início da crise era uma componente, entre outras, da tal “renegociação honrada” que recomendei e deveria ter acontecido em 2012, ou à volta disso, mas não aconteceu. Bom, não aconteceu a honrada nem a desonrada, felizmente para nós quanto a esta. O que sugeri foi dar a Portugal mais prazo e menos taxa de juro da dívida pública perante a Europa, passando para a Europa a parte do FMI, também.

A opção política não foi essa, ou não pôde ser essa, e entretanto pagámos muito mais juros. Valeu-nos o facto de emergir uma política monetária europeia muito favorável, progressiva e duradoura, que nada teve a ver com a nossa intervenção política, mas sim com o BCE do senhor Draghi. O BCE provocou a impressionante descida geral das taxas de juro e contribuiu para uma vaga de fundo de confiança.

O que deveria estar a ser feito?

Uma longa vaga de fundo que para nós caiu do céu, mas o povo sabe que “há mar e mar há ir e voltar”, não sei se estamos só no ir… O que deveria estar a ser feito pelo Governo? Bem, a gestão do stock e das emissões da dívida está em boas mãos, o IGCP tem feito um bom trabalho. Mas, como é evidente, o IGCP não vai às causas da dívida, nada ou muito pouco tem a ver com o “porquê” do pesadíssimo endividamento do Estado. Sobre o “porquê”, existe o discurso mais gasto, em vão, da política portuguesa de “p” pequeno, é um discurso dito em ocasiões e guiões repletos de promessas: o “porquê” resolve-se com reformas estruturais da despesa pública. Das palavras aos atos, é o que se sabe.

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