Quinta-feira e outros dias

O livro de Cavaco Silva é o testemunho de um grande político, mas acima de tudo, de um grande governante que Portugal teve.

Na passada quinta-feira, o Presidente Cavaco Silva apresentou o seu primeiro volume de memórias presidenciais. Trata-se do volume que no essencial reporta a atividade política do primeiro mandato (embora tenha uma parte, relativa às iniciativas presidências, que cobre os dois mandatos).

É de saudar o hábito (extremamente relevante e útil, mas raro em Portugal), que o Presidente Cavaco Silva tem em escrever as suas memórias. Foi assim com os 10 anos de primeiro-ministro e é agora com o seu tempo como Presidente. Falta o segundo mandato, que terá ainda de esperar mais algum tempo. Mas é importante que aqueles que exercem cargos públicos tenham a humildade de prestar contas e de deixar o seu testemunho. Este livro é um elemento valioso para compreender o período que nos conduziu ao desastre económico, institucional e político de 2011.

O livro é um manual de como um Presidente deve atuar no nosso sistema político-constitucional. Não tenho dúvidas que quando se fizer a história, desapaixonada e isenta, deste período, muitos considerarão que o Presidente Cavaco Silva foi quem melhor interpretou as competências de um Presidente. Goste-se ou não dos princípios constitucionais que temos (isso é outra discussão), um Presidente é sobretudo um poder de equilíbrio, de estabilidade e de influência discreta. O pior que poderia acontecer a Portugal era ter um Presidente que quisesse governar na praça pública, substituindo-se e menorizando o governo.

Alguns comentadores referiram que não fazia sentido que um livro de memórias de um Presidente se centrasse na sua relação com o governo. Ora, isso, ou mostra um preconceito que a nossa esquerda tem contra o Presidente Cavaco Silva (e que é muito profundo) ou demonstra um total desconhecimento das funções de um Presidente.

Não me prenuncio sobre os episódios específicos do livro, por duas razões: primeiro, as minhas funções de assessor económico situam-se no segundo mandato; segundo, mesmo quando sair o segundo volume, que terá seguramente episódios que testemunhei, creio que devo manter o dever de reserva.

Mas a experiência que tive reforça aquilo que li no livro. Primeiro, que a relação com o governo era uma parte central e crítico do trabalho na Casa Civil (coordenado pela pessoa que até hoje talvez mais me marcou profissionalmente, o Dr. Nunes Liberato). Era assim na análise dos diplomas, em que cada área era chamada a pronunciar-se sobre matérias das suas competências. Recordo diplomas difíceis e complexos, dado o período de programa da Troika, sobre o setor financeiro, energia, PPPs, nova LEO, etc.

Mas também era assim na preparação das reuniões de quinta-feira. A assessoria económica preparava uma nota para cada reunião, de acompanhamento da conjuntura económica e com a atualidade económica e financeira. Essas notas costumavam ter entre 8 a 12 páginas (embora variassem bastante). O objetivo era informar o Presidente do que entendíamos ser mais relevante de ser analisado e discutido com o Primeiro-Ministro. Claro que ter um Presidente que é Professor Catedrático de Economia e Finanças Públicas ajuda muito, mas obriga a um cuidado ainda maior.

Não conhecia pessoalmente o Presidente Cavaco Silva quando iniciei as minhas funções em Belém. Nunca me tinha cruzado com ele, nem profissionalmente, nem pessoalmente (os 40 anos de diferença de idade que temos explica isso, em 1996 eu ainda estava no secundário). Mas o contacto veio confirmar aquilo que era a minha opinião: alguém com um elevado sentido de Estado e que sempre colocou o superior interesse nacional acima de tudo. Mas também alguém extremamente dedicado ao trabalho, muito exigente e com um rigor metodológico impressionante!

Qualquer pedido era feito de forma clara, rigorosa, coerente e estável. Por hábito, o Presidente chamava a pessoa em questão, explicava o que pretendia ou precisava e, invariavelmente, entregava umas folhas A5 com os tópicos daquilo que pretendia. Nunca havia o risco de mudança, porque tudo era objeto de reflexão e experiência. E qualquer pedido era feito antecipadamente.

Adicionalmente, encontrei um Presidente muito recetivo a ouvir e com quem era possível manter uma discussão franca e aberta. Nunca me senti inibido (nem pelo Professor Catedrático na minha área, nem pelo Presidente) de escrever ou dizer aquilo que entendia. Claro que as decisões eram do Presidente, que era quem tinha a legitimidade e a responsabilidade.

Nunca vi o Presidente Cavaco Silva gritar, ficar impaciente, exaltar-se ou maltratar/humilhar ninguém, nem conheço ninguém que afirme que isso alguma vez tenha acontecido. Pelo contrário, no trato pessoal (mantendo naturalmente a distância e o formalismo que se exige num local de trabalho, ainda para mais na Presidência da República, no tratamento com o Presidente), é alguém afável, simpático e com uma palavra de incentivo e reconhecimento. Não esqueço que quando fiz a minha pré-defesa do Ph.D in Finance em Tilburg já estava em Belém. A pré-defesa em Tilburg é o momento crítico do Doutoramento. É uma prova de 4 horas, fechada, em que numa sala se discute os detalhes da tese com o júri. Três a quatro meses depois é a defesa, que é uma cerimónia pública de confirmação. No dia da minha pré-defesa, depois de esta terminar, recebi um telefonema pessoal do Presidente Cavaco Silva felicitar-me.

O livro “Quinta-feira e outros dias” é o testemunho de um grande político, mas acima de tudo, de um grande governante que Portugal teve. Alguém que marcou profundamente (e positivamente) Portugal na entrada para a Europa e no desenvolvimento e reformas estruturais que aconteceram entre 85 e 95. E de alguém que evitou, dentro daquilo que um Presidente pode fazer no nosso sistema, que o desastre Sócrates tivesse consequências ainda piores para Portugal.

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