Afinal, a dignidade também prescreve?

  • Rita Matias
  • 2 Novembro 2018

Está em causa o arquivamento da participação contra Ricardo Sá Fernandes por prescrição.

Em 29/11/2010, escrevi nas páginas da Advocatus um pequeno texto dando conta de peripécias escandalosas que envolviam o desenrolar da participação disciplinar que, em fevereiro de 2006, havia apresentado na Ordem dos Advogados contra o meu colega de escritório, sócio da mesma sociedade e amigo pessoal, Ricardo Sá Fernandes.

Passados tantos anos, é necessário relembrar os factos. O irmão do meu colega, José Sá Fernandes, intentou em nome próprio, contra o Município de Lisboa e Bragaparques, SA, uma ação popular, invocando a nulidade do loteamento municipal que estava na origem da permuta dos terrenos do Parque Mayer por um dos lotes da Feira Popular, bem como da hasta pública que terminara com a adjudicação do segundo lote à Bragaparques, SA, que o pagou a preços anteriores à crise de 2008.

A ação popular veio a ser contestada pelo Município de Lisboa e pela Bragaparques, SA, sendo eu a mandatária desta última. Eleito vereador da CML nas eleições autárquicas de 2005, José Sá Fernandes entendeu que devia deixar de patrocinar a ação popular e decidiu mandatar o irmão para esse efeito.

Já com a procuração nos autos, Ricardo Sá Fernandes dispôs-se a gravar conversas tidas, sem o meu conhecimento, com o administrador da Bragaparques, SA, parte contrária na ação judicial pendente, e entregou as gravações às autoridades de investigação criminal, numa operação concertada.

Só me restava, como advogada, participar à OA a flagrante violação, por parte do meu colega de escritório, do sigilo profissional e dos mais elementares deveres deontológicos.

Era por demais evidente, desde o início, o desconforto dos representantes da OA em abordar o problema por mim colocado, a constante desvalorização do prazo de prescrição em curso, a relutância em admitir sequer que tal podia acontecer. Fui percebendo que a prescrição era a única solução que a OA tinha em vista, por ser aquela que não obrigava a uma tomada de posição sobre assunto que lhe interessava ignorar. E o processo disciplinar foi decorrendo lentamente, numa sucessão de situações insólitas, nulidades processuais e atrasos sem qualquer justificação.

Como explicado no meu artigo de 29/11/2010, a acusação foi dada 4 anos após a participação, mas as nulidades a seguir invocadas pelo participado foram reconhecidas em apenas 24 horas pelo novo relator, nomeado após a renúncia ao cargo da anterior relatora, cujos motivos se desconhecem.

Em 09/12/2010, ou seja, 9 dias após a publicação do meu artigo, o instrutor concluiu pela inexistência de qualquer ilícito disciplinar e o processo foi arquivado, o que me obrigou a recorrer para o Conselho Superior. Após parecer do relator, foi determinado pelo Conselho Superior que o processo disciplinar prosseguisse, dando seguimento à acusação que já dele constava.

Seguiram-se as inquirições das testemunhas que foram efetuadas apenas na presença, e com intervenção, do participado já que a participante (eu) nem sequer foi notificada da sua realização, o que me obrigou à invocação da nulidade de tais diligências. Estas nulidades nunca foram sequer apreciadas.

Em 04/12/2013, o Conselho de Deontologia aprova a proposta de arquivamento dos autos elaborada pelo relator que se limitou a reproduzir acriticamente a argumentação do participado e ignorou todo e qualquer argumento da participante.

Como é óbvio, uma tal decisão teria de ser validada pelo Conselho Superior pelo que, em 21/01/2014, apresentei recurso junto deste órgão.

Entretanto, decorria nos tribunais judiciais um processo crime em que Ricardo Sá Fernandes era acusado pela prática do crime de gravações ilícitas, as mesmas que tinham dado origem à participação disciplinar.

A primeira gravação, efetuada sem autorização judicial, levou a que fosse condenado pelo crime de gravação ilícita, por decisão transitada em julgado no final de longo processo judicial que passou pelo Tribunal Constitucional. A justificação da condenação é simples, como resulta da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26/04/2012: “Como está por demais provado, o arguido «adivinhou» os propósitos do assistente, não recusou o convite que se diz ter-lhe sido feito por este, antes o acolheu, munindo-se, até, de equipamento necessário para registar o acontecimento. Isto é o arguido criou intencionalmente o suposto «perigo» e foi ao seu encontro, embora devidamente precavido”.

Conhecedora desta decisão judicial, a Ordem dos Advogados optou sobranceiramente por a ignorar e continuou a nada fazer. De 04/04/2014 a 12/09/2018 – data em que a relatora se lembrou finalmente de contar o prazo de prescrição – nada mas mesmo nada aconteceu no processo. Em 27/09/2014, o Conselho de Deontologia deliberou arquivar o processo por prescrição.

Certo é que, em 05/12/2010, Ricardo Sá Fernandes, numa daquelas tiradas bombásticas que o caracterizam, respondeu na Advocatus ao meu artigo: «aqui fica consignado que já comuniquei à Ordem dos Advogados, ao abrigo do art. 112º, nº5 do nosso Estatuto, que, acaso alguma vez o procedimento venha a prescrever, eu recuso a sua extinção por tal motivo, exigindo a sua continuação até ao seu termo, como é meu direito. É que, para mim, a dignidade não prescreve. Tal como a indignidade».

Ao que parece, tal comunicação não foi feita e há que concluir que a dignidade de Ricardo Sá Fernandes, afinal, prescreveu.

  • Rita Matias
  • Advogada Bragaparques

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