Aprendeu-se pouco com o Lehman Brothers. Quando é a próxima crise?

A memória é curta para que as lições sejam aprendidas. E os riscos de uma nova crise, ainda que diferentes, estão aí. Passaram dez anos desde a queda do Lehman Brothers.

Se, antes de começarmos a entrevistar 15 pessoas dos mais variados círculos, de empresários a políticos, de reguladores a economistas e advogados, nos perguntassem pelas nossas expectativas, talvez não adivinhássemos um consenso tão alargado. Com mais ou menos pontos em comum, e com mais ou menos concordâncias sobre as razões que motivaram a última crise e aquelas que poderão levar a uma nova, as respostas destas 15 pessoas sobre o que o mundo aprendeu com a queda do Lehman Brothers pode resumir-se em três ideias chave: a falta de ética e a má governação são vícios difíceis de largar; a memória humana é demasiado curta para que as lições sejam verdadeiramente aprendidas; e os riscos de uma nova crise, ainda que não exatamente os mesmos de há dez anos, estão todos aí.

O ponto de partida desta história é a queda do Lehman Brothers, no dia 15 de setembro de 2008, mas é preciso recuar muito mais para compreender o que nos trouxe até aqui. Durante as décadas anteriores, num ambiente “completamente liberalizado”, “altamente alavancado” e sem “nenhum tipo de regulação”, como descreve a deputada Mariana Mortágua, as instituições financeiras norte-americanas foram empacotando créditos de clientes de alto risco em produtos financeiros que depois venderam em todo o mundo, com chancela de qualidade das agências de rating. Eram os chamados subprime, ou empréstimos hipotecários de alto risco.

Eram produtos populares. O modelo aguentou-se até que, ao contrário do que era esperado, os preços das casas começaram a cair. Com os imóveis a valerem menos do que os créditos concedidos, e num contexto de subida de juros, os clientes de alto risco começaram a deixar de conseguir pagar os empréstimos. Esses produtos de “qualidade” mostraram, assim, o risco que continham. Deixaram de render o que rendiam, levando a perdas nas carteiras de muitos fundos de investimento que neles se apoiaram para garantirem retornos atrativos aos seus investidores.

O primeiro sinal de alerta a ser verdadeiramente ouvido surgiu quando, em julho de 2007, o banco de investimento Bear Stearns viu dois dos fundos de investimento que geria, expostos aos créditos subprime, a entrarem em colapso, incapazes de reembolsarem os investidores que na altura já corriam para resgatarem as suas poupanças. O destino deste banco não foi o da falência, mas não esteve longe: em março de 2008, foi vendido por 236 milhões de dólares ao JPMorgan Chase, que pagou menos de 10% do que o banco de investimento realmente valia.

Os sinais estavam lá todos e ninguém pode dizer que tenha sido realmente surpreendido. “Desde a queda do Bear Sterns, seis meses antes, sabia-se que iam cair outros”, admite o economista Ricardo Reis. Aliás, recorda Cristina Casalinho, presidente do IGCP, havia até “rumores da possibilidade de falência de um importante banco norte-americano”.

Mesmo assim, o “efeito devastador que teve” a queda deste banco, como descreveu Esmeralda Dourado, administradora não executiva da TAP, levou a um sentimento geral de estupefação. “A notícia foi recebida por todos nós, independentemente das nacionalidades, com a mesma incredulidade, e com o sentimento de que o mundo tinha acabado de mudar dramaticamente”, resume Gabriela Figueiredo Dias, presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM).

Sobretudo, porventura, no setor financeiro, “que se julgava até então inabalável”, como refere a presidente do Carregosa, Maria Cândida Rocha e Silva. À data presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD), Fernando Faria de Oliveira, agora presidente da Associação Portuguesa de Bancos (APB), também recorda ter recebido a notícia com “surpresa, choque e natural preocupação”.

Velhos riscos e riscos “de roupa nova”

Ao tiro de partida dado pela queda do Lehman Brothers, seguiu-se uma onda de choque que, mais cedo ou mais tarde, chegou a todos os cantos do mundo. As bolsas tocaram mínimos históricos, as economias entraram na maior recessão desde a década de 1930 e reguladores e governos viram-se obrigados a mudar por completo os modelos que tinham por adquiridos. Aqui, os bancos centrais foram chamados a evitar um cenário ainda mais devastador. “Ao longo deste processo, os bancos centrais foram determinantes: forneceram aos bancos a liquidez que os mercados não renovaram, intervieram nos mercados primário ou secundário (caso do Sistema Europeu de Bancos Centrais) e, assim, garantiram que uma crise da mesma escala da Grande Crise de 1929 não tivesse tido o impacto negativo dos anos trinta”, apontou Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, em declarações à Lusa.

Passaram-se dez anos e, pelo menos para alguns, é claro não só que o quadro regulatório é hoje mais exigente, em termos de requisitos de capital e de liquidez, como que os modelos de controlo interno e gestão do risco também se tornaram mais rigorosos. Mas nem por isso os riscos desapareceram, como alerta, por exemplo, Gabriela Figueiredo Dias: “Os riscos não desapareceram, estão aí de roupa nova, nacionais e globais: a inovação financeira vertiginosa, o aumento global da dívida, pública e privada, a interrupção das compras de dívida pelo BCE e a subida das taxas de juro nas economias avançadas, o risco de ajustamento súbito dos preços de alguns ativos, de taxas de juro, e das condições de mercado nas economias emergentes poderão ser os elementos de ativação de uma nova crise, no médio prazo”.

Ao mesmo tempo, como é também mencionado por vários, a falta de ética e as más práticas de governação nas instituições financeiras representam dos maiores riscos para uma nova crise. “Os comportamentos errados nas instituições financeiras — como a tomada excessiva de riscos, a falta de ética nas relações com clientes e investidores e a má governação — conduzem inevitavelmente a maus resultados, com perdas substanciais para acionistas e clientes dessas instituições, mas também para as economias e, nessa medida para todos os cidadãos”, considera Carlos Tavares, antigo presidente da CMVM e agora presidente do Montepio Geral.

Os comportamentos errados nas instituições financeiras — como a tomada excessiva de riscos, a falta de ética nas relações com clientes e investidores e a má governação — conduzem inevitavelmente a maus resultados.

Carlos Tavares

Presidente do Montepio Geral

E se, por um lado, temos governos coniventes com a formação de uma nova bolha imobiliária, numa altura em que os preços disparam, por outro, o caminho da consolidação orçamental pode não estar a ser seguido como deveria, defende Mariana Mortágua. “Não há vontade nenhuma do Governo em controlar essa bolha, porque há crescimento económico e não o queremos travar. Mais tarde ou mais cedo, essa bolha terá consequências”, antecipa a deputada bloquista.

Sobre as contas públicas, as críticas vêm de Adolfo Mesquita Nunes, mas também de Teodora Cardoso. “A vulnerabilidade resultante da acumulação de défices externos reduziu-se, mas a propensão a retomá-los não foi eliminada”, considera a presidente do Conselho das Finanças Públicas (CFP). “Os países que melhor passaram pela crise foram os países que, durante os tempos de crescimento, nunca abandonaram a disciplina orçamental. Nem deixaram a responsabilidade no endividamento, o reforço da independência dos reguladores, e a separação clara entre os desejos dos políticos e a realidade económica e orçamental do país”, acrescenta o vice-presidente do CDS-PP.

A juntar à já extensa lista, há um novo e perigoso contexto internacional. “O que mais me assusta é a parte política: a guerra comercial com os Estados Unidos, o crescimento destas forças nacionalistas que querem fechar os países. É isso que pode dar origem a uma crise muito séria”, avisa Carlos Moedas, comissário europeu para a Investigação, Inovação e Ciência, numa referência ao protecionismo encetado por Donald Trump.

O perigo dos balanços “inchados” dos bancos centrais

No topo deste complexo bolo de riscos, está a cereja “balanços dos bancos centrais”. A crise de 2008 levou a que instituições como o BCE e a Fed iniciassem uma massiva política monetária de estímulos — o programa de quantitative easing do BCE, que investiu milhares de milhões de euros em dívidas soberanas ao mesmo tempo que cortou as taxas de juro para 0%, na tentativa de estimular o crescimento económico, era apelidado, não raras vezes, de bazuka. O resultado foi o aumento dos balanços dos bancos centrais para níveis sem precedentes, que dificilmente serão revertidos.

No final de agosto deste ano, o balanço do BCE ultrapassava os 4,5 biliões de euros, estando em (lento) declínio desde o início deste ano. No mesmo mês, o balanço da Fed ultrapassava ligeiramente os 4 biliões de dólares; neste caso, e ao contrário do que aconteceu com o BCE, os estímulos já têm vindo a ser aliviados desde 2014.

Numa entrevista que será publicada na próxima sexta-feira, o economista e ex-banqueiro Vítor Bento, agora à frente da SIBS, resume o problema: “O fator mais importante é que, enquanto na crise de 2007/2008 os bancos centrais tinham o balanço completamente limpo e puderam intervir absorvendo o potencial disruptivo, fazendo inchar os seus próprio balanços, esses balanços, continuando inchados, levam a que a capacidade que os bancos centrais têm hoje de reagir a uma crise parecida com a de 2008 seja muitíssimo menor“. Por isso mesmo, “o potencial disruptivo de uma nova crise pode ser maior, por os bombeiros terem o equipamento parcialmente esgotado”.

2018 diferente de 2008? A dívida disparou

Uma análise aos principais indicadores macroeconómicos mostra um sistema mundial num momento positivo, mas ainda a recuperar do choque. À maior recessão económica a nível mundial desde a grande depressão, seguiu-se uma recuperação expressiva da maioria das economias, num primeiro momento. Contudo, e apesar de manterem o crescimento, as maiores economias registam uma evolução apenas moderada ao longo da última década.

Por arrasto, o mesmo é notório no mercado de trabalho. Apesar da progressiva recuperação, a taxa de desemprego mantém-se em níveis superiores, ou semelhantes, aos que se verificavam no início da crise. E, mesmo com a criação de emprego, poucas alterações (leia-se: aumentos) se veem nos salários. Em Portugal, por exemplo, o rendimento médio mensal líquido da população empregada por conta de outrem aumentou a um ritmo médio de 1,7% por ano, um valor que fica pouco acima de uma taxa de inflação anual média de 1,2% durante este período.

A inflação, por seu lado, estabilizou, estando já, este ano, em linha com a meta do Banco Central Europeu (BCE), que é uma taxa abaixo, mas muito próxima, de 2%.

Mais grave, como tem sido amplamente sinalizado, é a dimensão que as dívidas soberanas estão a assumir. Se, em 2007, o rácio da dívida em função da riqueza gerada pelos países rondava a casa dos 60% do produto interno bruto (PIB), os números de hoje são claramente diferentes. O volume de dívida foi aumentando a um ritmo mais acelerado do que a economia e, chegados a 2017, a dívida pública dos Estados Unidos já ultrapassa 105% do PIB. Na Zona Euro, está ainda abaixo dos 90%, mas alguns Estados-membros podem vir a ser um problema. Apesar da redução registada nos últimos anos, Portugal é um deles, com uma dívida de 125,7% do PIB registada no ano passado.

Apesar do aumento da dívida, esta está mais barata, com a queda generalizada dos juros. Mas mesmo isto poderá mudar em breve. Com a aproximação do final do programa de incentivos do Banco Central Europeu (BCE), marcado para dezembro, acompanhado por uma subida gradual dos juros também por parte da Reserva Federal norte-americana, os especialistas antecipam uma subida das taxas de juro dos países da Zona Euro. A visão não é partilhada por todos. Cristina Casalinho, por exemplo, afirmou, em entrevista ao Jornal de Negócios, que, no caso de Portugal, “a possível subida de taxas de juro de longo prazo pela menor presença de um investidor muito significativo pode funcionar como fator de atratividade para novos investidores”, assumindo que o país mantém o ritmo de crescimento da economia e a consolidação das contas públicas.

Sobram os mercados acionistas, onde não é fácil fazer uma análise homogénea. Na Europa, o índice que reúne as 600 maiores cotadas europeias, o Stoxx 600, está hoje praticamente ao mesmo nível do que antes da crise de 2007, depois de ter batido no fundo em 2009. O índice de referência norte-americano, o S&P 500 recuperou de tal forma que vale hoje mais do dobro do que valia antes da crise. O mesmo não se pode dizer do PSI-20, de dimensão irrelevante quando comparado com estes índices. A bolsa portuguesa vale hoje menos de metade do que valia no início de 2007.

Uma banca mais bem “apetrechada”, mas com trabalho por fazer

À parte de tudo, é ainda preciso avaliar a resiliência, hoje, do setor bancário. E se é certo que o processo de ajustamento por que os bancos passaram deixou-os mais capitalizados e com níveis de solidez mais confortáveis, é certo também que o caminho não está feito.

O diagnóstico feito por Faria de Oliveira para a banca nacional pode servir de base para o que se passa a nível global. “Os bancos nacionais estão muito mais capitalizados, mais sólidos, mais eficientes, com confortáveis rácios de liquidez e de leverage“, considera. Ao mesmo tempo, os bancos “têm vindo a desenvolver modelos de negócio ajustados às novas realidades, nomeadamente à digital, e aos interesses dos clientes”, para além de estarem agora sujeitos aos “muito exigentes e diversificados requisitos regulatórios e de supervisão”.

Os bancos nacionais estão muito mais capitalizados, mais sólidos, mais eficientes, com confortáveis rácios de liquidez e de leverage.

Fernando Faria de Oliveira

Presidente da APB

Paralelamente, aponta ainda o presidente da APB, “a governação dos bancos foi objeto de aprofundamentos significativos”.

Mas não está livre de perigo. “O setor tem ainda que melhorar, nomeadamente, os seus níveis de rentabilidade, e completar o processo de redução dos non-performing loans [crédito malparado], promover os avanços digitais e melhorar a reputação“.

O malparado é, pelo menos na Europa, um risco persistente. Ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos, onde houve uma redução drástica do montante de crédito em risco, para que este represente agora apenas cerca de 1% do total de crédito concedido, na Europa, o malparado continua a ser um problema, com destaque para alguns países — Portugal volta, aqui, a ser chamado pelas piores razões. O crédito malparado representava, no final do ano passado, 3,4% do total de crédito concedido pelos bancos da Zona Euro, um valor que continua acima do que era registado em 2008. Em Portugal, a dimensão é outra: 13,3% do crédito total era considerado mau crédito no ano passado, o que, ainda assim, representa uma redução significativa face ao pico de 17,5% registado em 2015.

Resumindo: “O sistema bancário está mais bem apetrechado e tem mais defesas, mas o trabalho em curso de reforço, modernização e eficiência dos nossos bancos prossegue”.

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