O bem e o mal comum

A promoção da concorrência e a definição do que se não pode fazer parecem abordagens muito mais eficazes que a alternativa da micro gestão dos regulados por parte dos reguladores ou nada fazer.

O Nobel da Economia (2014) Jean Tirole apresentou ontem em Lisboa a versão portuguesa do seu livro “Economia do Bem Comum” (Guerra e Paz, Editores). Um dos temas de fundo do livro é a necessidade de equilíbrio entre o livre funcionamento dos mercados e a regulação dos mesmos. Trata-se de um assunto sempre na ordem do dia e um assunto que movimenta acalorados debates sobre falhas de mercado e falhas de governo. Um assunto que me leva sempre de volta a duas questões existenciais.

  1. Que modelo de regulação devemos adoptar?
  2. Quem regula os reguladores?

Jean Tirole tem vindo a argumentar ao longo dos anos que não existe uma bala de prata para resolver o problema da regulação económica. As situações, as precauções e os remédios dependem das características intrínsecas dos sectores e dos problemas sob análise. Mas, no final, argumenta o autor, o propósito da regulação, nas suas múltiplas formas, é o mesmo: assegurar um equilíbrio entre o preço a que os bens regulados estão ao dispor dos consumidores, promovendo a difusão da oferta entre os mesmos, e a rendibilidade económica e financeira das empresas que são reguladas.

Ora, aqueles que me seguem aqui no ECO serão certamente conhecedores do meu cepticismo acerca da noção de bem comum enquanto resultado de uma alegada racionalidade colectiva. Existem, quanto muito, racionalidades individuais que poderão eventualmente convergir em propósitos comuns. Mas são coisas distintas. Ao mesmo tempo, os leitores serão igualmente conhecedores da minha crítica aos oligopólios presentes na economia portuguesa. A banca portuguesa é disso exemplo e é um exemplo que tenho criticado em diversas ocasiões. Mas há outros. As telecomunicações. A energia. Os transportes. A saúde. A distribuição. Entre outros, porventura, menos mediáticos ou mais afastados dos holofotes públicos.

Porém, não obstante a crescente concentração de mercado em vários sectores, a tendência parece estar no sentido do seu agravamento. O exemplo da banca, aquele que melhor conheço, é paradigmático. Temos hoje em Portugal uma situação inédita na Europa: quatro bancos controlam mais de 90% dos activos bancários. No entanto, se fosse feita a vontade do regulador (quer do português quer do europeu) a concentração seria ainda maior. Contudo, temos de nos questionar: qual tem sido o resultado desta concentração? Resposta: a economia está a crescer com alguma expressão desde o final de 2013, mas no mesmo período de tempo o stock de crédito diminuiu 20%. Em suma, a economia real tem sido penalizada pela exiguidade da oferta. Podemos falar aqui de bem comum? Creio que não.

A literatura económica sobre regulação tem evoluído ao longo dos tempos. Há aqueles que defendem uma abordagem pura e dura do tipo “anti-trust”, marcada pelo predomínio de leis de concorrência sobre qualquer evidência de concentração oligopolista. Há outros que defendem uma abordagem contratualista caracterizada pela imposição de limites (linhas vermelhas) contratuais, a fim de contrabalançar eventuais assimetrias de informação entre procura e oferta. Outros que preconizam a micro gestão dos regulados, na prática, transferindo “de facto” para os reguladores a gestão dos negócios regulados. E outros ainda que são cépticos de toda e qualquer regulação. Enfim, a lista não é certamente exaustiva e não se esgota aqui.

Ora, entre as quatro filosofias descritas antes, eu estou algures entre a abordagem tradicional “anti-trust” e a corrente contratualista. Mas reconheço a existência de obstáculos práticos à implementação desse ideal de regulação.

Primeiro, uma intrusão excessiva na economia, mesmo que com o intuito de fomentar a concorrência, pode, em si mesmo, desvirtuar a concorrência pois, para que o processo concorrencial seja efectivo, o mecanismo de preços (e a procura e a oferta que dele decorrem) tem de poder funcionar livremente. Assim, a imposição de remédios por parte do Estado com vista a uma maior concorrência no mercado é, como a palavra indica, uma imposição, podendo ser contraproducente.

Segundo, a ideia de que o regulador, no conforto do seu gabinete, é capaz de definir limites contratuais resulta frequentemente numa ilusão de controlo e em ingenuidade. Por um lado, porque as práticas de mercado são dinâmicas e derivam da própria interação entre a procura e a oferta do mercado. Por outro lado, porque pressupõe que os reguladores, eles próprios, já tenham tido a experiência de estar do outro lado da barricada (como regulados ou como estudiosos do sector regulado), o que nem sempre é o caso. Ainda assim, a promoção da concorrência e a definição do que se não pode fazer parecem-me, em geral, abordagens muito mais eficazes e eficientes do que a alternativa da micro gestão dos regulados por parte dos reguladores ou a alternativa do nada fazer.

Na apresentação que fez em Lisboa, Jean Tirole insistiu na ideia da economia como ciência normativa, isto é, na qual a moralidade e os princípios éticos – os quais resultam na noção de fazer o bem à escala global da sociedade, o tal bem comum – devem exercer papel fundamental sobre a regulação e, em geral, sobre as chamadas políticas públicas.

Na prática, ainda que por caminho diverso, trata-se do regresso às origens da economia enquanto ciência social, fundada pela escola dos moralistas escoceses, de que Adam Smith veio a ser o primeiro grande intérprete. De resto, é sempre bom recordar, a primeira obra de Smith foi “A Teoria dos Sentimentos Morais” e só depois veio “A Riqueza das Nações”. Mas será mesmo possível a economia do bem comum de que nos fala Tirole? Ou será que – como apontou o jornalista Henrique Monteiro em pergunta dirigida ao Nobel – nos deveríamos preocupar em simplesmente evitar o mal comum? A diferença, sendo subtil, não é de somenos, e leva-nos por caminhos bem diferentes.

O autor escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico

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