Ficarão os cartões de visita “em vias de extinção” com o RGPD?

  • Cláudia Fernandes Martins
  • 18 Abril 2018

A associada sénior da Macedo Vitorino & Associados fala sobre a sobrevivência (ou não) dos cartões de visitas a partir do dia 25 de maio, com o novo Regulamento Nacional de Proteção de Dados.

Nas conferências dedicadas ao tema sobre o RGPD em que tenho tido a oportunidade de participar e, portanto, num contexto propício à troca de cartões de visita, tem havido uma questão que tem merecido particular interesse (obviamente, entre outras), que é a de saber que destino estará reservado aos cartões de visita a partir de 25 de maio de 2018.

Se tivermos em conta os exigentes requisitos do RGPD em matéria de consentimento do titular dos dados (ou seja, da pessoa a quem os dados dizem respeito), diremos, à partida, que uma mera troca de cartões de visita não cumprirá esses requisitos. Para ser válido ao abrigo do RGPD, o consentimento deverá traduzir-se num ato positivo claro, que indique uma manifestação de vontade livre, específica, informada e inequívoca. O consentimento poderá ser prestado por declaração escrita ou oral, mas já não será válido o silêncio ou a omissão.

Dito isto, até se poderia pensar que bastaria passar a incluir-se uma declaração escrita de consentimento nos cartões de visita ou até, no limite, dar um consentimento verbal no momento da troca de cartões. Todavia, não é bem assim. Para além de inverosímil (e até de certa forma, caricato), poderiam ainda colocar-se outras questões, nomeadamente, quanto à prova do consentimento e do direito à informação dos titulares dos dados que, no momento da recolha dos dados, devem ser informados sobre diversos aspetos do tratamento dos seus dados.

Se uma declaração escrita de consentimento incluída num cartão de visita ou até, no limite, uma gravação de voz do consentimento e uma remissão no cartão de visita para a política de privacidade poderiam, em teoria, resolver aquelas questões (o que ainda assim tenho as minhas dúvidas), não deixaria, a meu ver, de existir um obstáculo (quase) intransponível: a realidade, pois, não é verosímil que, no contexto de um evento ou de uma reunião, se coloquem, em prática, tais soluções.

Salvo melhor opinião, o consentimento não constitui o fundamento (mais) adequado para justificar o tratamento de dados pessoais no âmbito dos cartões de visita. Isto não significa, porém, que os cartões de visita passem a estar “em vias de extinção” com o RGPD. O consentimento não é o único fundamento para o tratamento dos dados. Os interesses legítimos de quem determina as finalidades e os meios de tratamento (ou seja, dos “responsáveis pelo tratamento”), ou de terceiros, também constituem fundamento para o tratamento.

A troca de cartões de visita poderá, assim, ser justificada, pelo interesse legítimo em situações como aquela em que o titular dos dados seja cliente ou esteja ao serviço do responsável pelo tratamento. Mas mesmo fora desses casos, será possível, dependendo dos casos, justificar, de forma razoável, que os dados dos cartões de visita possam ser tratados ao abrigo de um interesse legítimo.

Não só quanto aos cartões de visita, mas em geral, a existência de um interesse legítimo requer uma avaliação cuidada, em particular de saber se o titular dos dados pode razoavelmente prever, no momento e no contexto em que os dados pessoais são recolhidos, que esses poderão vir a ser tratados com essa finalidade. Imaginemos, por exemplo, uma reunião entre um representante de uma empresa, que é acompanhado pelo seu advogado, e uma entidade reguladora, tendo em vista a discussão de uma determinada questão de âmbito regulatório, e na qual os diversos intervenientes trocam cartões de visita. A meu ver, não deixará de ser legítimo que o advogado a quem o colaborador da entidade reguladora deu o seu cartão de visita venha, mais tarde, a contactá-lo no sentido de vir a esclarecer uma questão futura sobre um assunto regulatório para o mesmo ou outro cliente. Nesta situação, o que já não seria legítimo é que os dados do cartão de visita fossem utilizados para, a partir daí, ser enviada publicidade sobre produtos ou serviços pela empresa sua cliente.

Salvo melhor opinião, e sob pena de se negar a realidade, e como dizia o jurista francês GEORGES RIPERT “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade vinga-se ignorando o Direito”, a resposta a esta questão só poderá ser uma: com sensibilidade e bom-senso, os cartões de visita poderão ser justificados pelo interesse legítimo à luz do RGPD.

  • Cláudia Fernandes Martins

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