Doutores em tempos de cólera

  • José Eduardo Martins
  • 16 Novembro 2017

José Eduardo Martins, sócio da Abreu Advogados, fala da trilogia Advogado, política e direito no artigo de opinião publicado na Advocatus deste mês.

A trilogiA AdvogAdo-políticA-direito é, como se sabe, antiga e revigora-se a cada regime governativo e parlamentar, sustentada em parte pelo facto de muitos dos deputados à Assembleia da república exercerem em paralelo a profissão de advogado.

Além das teorias, os números, como o algodão, exemplificam: olhando para os 230 deputados do parlamento português é por demais evidente o domínio dos advogados e juristas nas bancadas (cerca de 37% na actual composição da AR). Na tinta que corre pelos jornais e nos posts que preenchem o feed no nosso dia-a-dia, a questão que vejo imediatamente surgir é: até que ponto o sistema de correlação entre poder político, advogados e interesses empresariais funciona de forma espontânea? percebo a relevância e questiono em igual medida, mas acima de tudo acredito em toda a virtude do sistema legislativo e em toda a extensão daquilo que deve competir às entidades regulatórias, não apenas neste sector, como nos demais.

No exercício de qualquer profissão – parece-me – não faz sentido absolutamente nenhum que exista a priori um sistema pré-definido de incompatibilidades. Uma espécie de diminuição em função da profissão. Qual é verdadeiramente a virtude desse sistema? Desresponsabilizar a fiscalização? Defendo o contrário. O que deve existir é, evidentemente, um conjunto de mecanismos de controlo e de fiscalização que monitorizem e regulem o exercício das diversas indústrias, incluindo-se aí o sector da advocacia.

Outra coisa bem diferente é (e é importante fazer esta ressalva) a questão das incompatibilidades nas profissões que não podem ser exercidas em paralelo com a barra dos tribunais, como por exemplo agentes de execução, gestores ou notários. O critério não é duplo. É ético. Repare que tradicionalmente, a função do advogado exerce-se em dois planos, o plano judicial e o plano extrajudicial.

Esse desempenho é um vasto campo de actividade, sendo que ambos os planos não têm necessariamente de se cruzar no mesmo espaço cronológico. Os advogados são os primeiros interessados num sistema de justiça que responda aos legítimos anseios dos cidadãos e que satisfaça as justas necessidades das empresas, de capitais públicos ou privados. Somos umas das mais antigas profissões do mundo – Doutores em tempos de cólera actualmente 30.475 em Portugal, 13.920 homens e 16.555 mulheres – e somos seguramente os primeiros interessados num sistema de absoluta transparência. O escrutínio, esse sim, é fundamental para assegurar o sentido de responsabilidade.

O problema para nós, portugueses, passa então a outro: como é que podemos criar uma sociedade que exija mais aos diversos poderes? Podíamos talvez começar por reflectir sobre as diferenças entre voto e escrutínio. Voltando às incompatibilidades. O que verdadeiramente dá respaldo a um advogado é a sua credibilidade. A credibilidade do seu trabalho é crucial para quem o contrata. Quando existem litígios os clientes procuram o melhor porto de abrigo, procurando submeter os seus conflitos a uma jurisdição que conheçam e que lhes inspire confiança. E muito embora a advocacia sirva de inspiração a várias peças cinematográficas de Hollywood, que nos influenciam sobre a forma como vemos a profissão, a realidade (perdoem-me a franqueza) mostra-nos um cenário algo diferente daquele que vemos nos ecrãs e também daquele que vemos nos jornais. É que contrariamente à opinião generalizada, a verdade é que o exercício de um cargo político pode gerar (e gera frequentemente) um conjunto de entraves ao exercício da advocacia. Dou-lhe um exemplo, fácil até de recordar, quando há uns anos atrás, se debatia o Plano Nacional de Barragens.

Nessa altura, enquanto advogado, representava clientes nesta indústria e, como calcula, essa foi razão suprema pela qual nunca intervim politicamente nesse processo. Ao contrário o mais triste episódio que protagonizei no parlamento que teve justamente estrito na total liberdade para me pronunciar sobre os apoios à produção fotovoltaica por não ter no acervo de clientes a representação de qualquer interesse nessa matéria. Exerço advocacia há mais de 20 anos em várias jurisdições sobretudo em matérias relacionadas com direito público, ambiente e energia e, em paralelo, tento conciliar todas as exigências da minha agenda como promotor musical, militante do PSD, comentador televisivo, entre outras. grande parte do meu dia divide-se entre o tribunal e o escritório. A minha advocacia, por ser exercida em grande partilha e ambiente inter-disciplinar, é cada vez mais especializada. Mais focado nas relações entre produtores de energia e seus consumidores, entre produtores de resíduos e actividades licenciadas para os tratar, em tornos dos usos possíveis da agua e sua titularização e assim por diante. Muitas vezes entre particulares,. Muitas vezes no Tribunal Administrativo ou nos reguladores contra a Administração. E por isso ainda bem que as Sociedades de Advogados e os próprios advogados têm hoje um altíssimo nível de excelência e qualidade técnica. Cada um faz o que sabe, todos juntos sabemos mais.

O sector jurídico profissionalizou-se e a tecnologia está cada vez mais presente. De uma advocacia generalista passou-se a uma advocacia especializada, e, dessa especialização por ramo do direito entrámos na especialização por sectores e indústrias. A advocacia abrange hoje uma grande diversidade de desafios –, desde logo a internacionalização e a multidisciplinariedade. E, em Portugal, durante os últimos anos, acompanhámos significativas mudanças no nosso mercado, com um período de crise que implicou um programa de ajustamento económico e financeiro, com o colapso do sector da construção e do sector financeiro, com a privatização da maioria das grandes empresas públicas e, acima de tudo, com a entrada de capitais estrangeiros (investidores chineses, angolanos e brasileiros). Hoje vejo um mercado em crescimento, cada vez mais exigente, sofisticado e a apostar numa gestão inovadora e profissionalizada que oferece valor acrescentado ao cliente.

A internacionalização é, aliás, um processo obrigatório para uma Sociedades de Advogados de génese portuguesa, quer seja através de parcerias com escritórios locais e em jurisdições que têm matrizes jurídicas comuns à do Direito Português, mas também através do acompanhamento da internacionalização de clientes no mercado global e através do apoio e aconselhamento jurídico de players internacionais com operações em Portugal. Vivemos num mundo global, de grande abertura e interdependência das economias à escala mundial e, naturalmente, a advocacia acompanha esses desafios. As oportunidades da advocacia passam, ainda, por continuar a apoiar os sectores-chave da economia nacional, com especial enfoque nas indústrias que apresentam um crescimento emergente, como os sectores de imobiliário e turismo.

E a justiça? Que lugar ocupa hoje a justiça na nossa democracia? Ligo o noticiário e construo automaticamente a minha percepção com “Operações” à la carte. Aí estão os relatórios da OCDE para nos relembrar que continuamos nos lugares cimeiros dos países com menor transparência. É certo que como país temos um longo caminho a percorrer, mas se analisarmos de forma mais cuidada o sector verificamos importantes evoluções acontecerem no sector Justiça. Há que dizê-lo. Mas como advogado tenho também de sublinhar que o futuro tem de passar um maior investimento na melhoria de funcionamento dos tribunais.

O futuro, chegados aqui, perspectiva-se de grande mudança… e, sim, passa pelos millennials como se viu na eleição austríaca deste mês. Sebastian Kurz, de 31 anos, entra para o record do Guiness Book como o primeiro-ministro mais jovem do mundo. O ranking não pára de crescer: o Business Insider aponta 12 millennials mais poderosos do mundo (líderes de empresas ou figuras simplesmente mediáticas o suficiente para que a sua opinião seja difundida a nível mundial), com idades compreendidas entre os 20 e os 37 anos. Para nós, caros colegas, a interrogação passa a ser: como é que as Sociedades de Advogados estão a adaptar os seus modelos de gestão para enquadrar esta Geração Y? Eu como cozinho muito acredito na alquimia das misturas criarem um resultado. A tradição terá de se aliar uma vez mais com a modernidade.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

  • José Eduardo Martins
  • Sócio da Abreu Advogados

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