Fogo e gelo

Björn Borg vs. John McEnroe, dois homens, um jogo. A vida é triste, curta, e no final acaba. Termina sempre mal, de um modo fatal que, queiramos ou não, é mesmo o natural.

Lembramo-nos de alguns momentos especiais, sejam pessoais, nacionais ou universais: os muito idosos, quase em extinção, recordam, de olhos molhados, o dia da chegada à pátria, no regresso do morticínio de La Lys; outros, menos idosos, das manifestações em Lisboa pelo armistício da 2ª Guerra, de Humberto Delgado na ferrovia de Santa Apolónia ou em apoteose no Porto ou e Braga. Do 25 de Abril, então, muitos e muitos se lembram.

Por vezes, há excessos de memória: se fizermos a conta às pessoas que dizem ter estado no acanhado Largo do Carmo, nesse dia inicial inteiro e limpo, concluiremos decerto que nem o Estádio da Luz seria capaz de albergar tanta gente, feliz com lágrimas. Lembramo-nos do primeiro beijo, da primeira carícia, fugidia e pecaminosa, um pouco tímida até, e é melhor ficar por aqui nesta evocação de memórias íntimas. Milhões de pessoas em todo o mundo conseguem dizer onde e com quem estavam e o que faziam no dia em que a Humanidade deu um passo gigantesco na superfície lunar, ou quando a Humanidade deu um outro passo, igualmente gigantesco mas em sentido inverso, quando dois aviões se despenharam nas Torres Gémeas de Nova Iorque.

Pois eu lembro-me perfeitamente onde estava – em Bruxelas, permitam-me a inconfidência – e com quem estava – permitam-me a reserva – na tarde de 4 de Julho de 1981 em que John McEnroe derrotou Björn Borg em Wimbledon, vingando-se da derrota do ano anterior e retirando-lhe a possibilidade de se sagrar campeão pela sexta vez consecutiva no torneio mais mítico do planeta, jogado na verde relva, onde os tenistas deviam – ainda devem? – vestir-se predominantemente de branco, e os espectadores se deliciam com morangos & chantilly enquanto assistem ao jogo, sentados em camarotes vendidos a preços estratosféricos.

Sim, eu amava Borg, confesso. E, mesmo que a minha paixão idolátrica não fosse correspondida pelo tenista sueco, era suficientemente arrebatadora para me levar a odiar de morte o seu rival americano, quer pelo estilo bruto, demasiado rápido para o meu gosto, com que atirava raquetes para o chão e esmagava as bolas junto à rede, quer pela arrogância de menino rico e mimado com que maltratava os árbitros, discutindo todas as decisões que lhe fossem desfavoráveis. Só em 1990, na Austrália, perante Gerry Armstrong, um juiz menos condescendente e mais corajoso, avesso a aturar-lhe as birras, McEnroe foi finalmente punido, como há muito merecia, vendo o cartão vermelho e sendo expulso do court. McEnroe era odiado por muitos (e amado por outros tantos), visto como a expressão tenística da barbárie atávica – e irrevogável – de todos os americanos, nova-iorquinos incluídos.

Num extraordinário artigo saído em 2000 no The New York Times, Julian Rubinstein recorda um jogo caído no esquecimento, em que, no final, Johan Kriek exigiu que o norte-americano fosse irradiado do torneio, dizendo “I’m sick and tired of [Mc Enroe’s] bullshitt”, e acrescentando que “if I’m the only one that has the guts to say he needs to be kicked off the tour, fine. I work too hard to be treated like. That guy McEnroe has got a screw loose”. Era o tempo em que o ‘enfant terrible’ do ténis mundial chegava a envergonhar os seus compatriotas, a ponto de o já citado The New York Times lhe chamar, com exagero, “the worst advertisement for our system of values since Al Capone” (e Joseph McCarthy, o tenebroso senador da caça às bruxas?). Não sendo má pessoa, bem pelo contrário, John Patrick McEnroe Jr. encontrava-se nos antípodas do cavalheirismo do ténis, sendo impensável que alguma vez tivesse uma atitude de fair-play idêntica à daquele campeão que corrigiu a seu desfavor uma decisão do árbitro, com isso perdendo um jogo – e um torneio.

Seria difícil encontrar um contraste maior com a atitude de Björn Borg, razão pela qual as disputas entre ambos eram muito mais do que uma partida de ténis. No fundo, jogava-se ali uma diferente concepção da vida, numa rivalidade que ficou conhecida para a História como “Fire and Ice”, espelho das duas personalidades em confronto, o pirómano dos USA e o gélido e inexpressivo sueco, que só explodia de emoção no orgasmo da vitória. Isto para não dizer que no relvado de Wimbledon, seja na ‘grand finale’ de 1980, a do épico ‘tie-brake’ em que McEnroe conseguiu salvar-se a cinco ‘match points’ de Borg, seja na final do ano seguinte, em que John derrotou Björn, se digladiavam também, num certo sentido, dois mundos, o Novo e o Velho, a fogosa e avassaladora América contra a Europa, serena e sóbria.

No entanto, e como o tempo veio mostrar, Björn não era um ciborgue, o “Ice Borg” que lhe chamavam, um ser puramente racional e frio, cujo estilo de jogar era considerado por muitos como demasiado cerebral, lento, entediante: colocado no fundo do court, raras vezes ousando ir à rede, não tinha gestos aparatosos, daqueles que elevam vozes e fazem bater corações na plateia. Raposa matreira, esperava pelos deslizes dos adversários para lhes desferir o ‘passing shot’ letal, deixando-os literalmente colado ao terreno, numa humilhante exposição pública da sua impotência. Por isso se dava tão bem com os pisos que favoreciam o seu estilo rigoroso e lento – o relvado de Wimbledon, acima de tudo, mas também a terra batida de Roland Garros –, vendo-se em dificuldades a jogar nos sintéticos, com destaque para o do Open dos Estados Unidos, em que a bola salta lesta, para cá e para lá.

Vem tudo isto a propósito de dois livros e de um filme. Dos livros, falemos sobretudo do primeiro, que devorei vezes sem conta na longínqua adolescência: “Minha Vida, Meu Jogo”, de Björn Borg, é uma autobiografia narrada a Gene Scott, que a Edições Melhoramentos publicou em 1980, e que foi distribuído aos milhares no Portugal de então, quando os livros feitos no Brasil conseguiam vencer as pautas alfandegárias e a ignorância dos editores, distribuidores e livreiros. Uma época atrasada, como vêem, sobretudo quando comparada com os nossos tempos digitais, em que através de dois cliques na Internet é possível encomendar livros do outro lado do mundo… excepto do Brasil. Porquê, senhores?

Naquela autobiografia, Borg fala, como sempre, de uma forma contida. Talvez não diga o essencial; que para jogar como ele jogava era necessária uma capacidade de concentração absolutamente invulgar. Lembra-se a juventude de um menino nascido em 1956 na localidade Sodertalje, nos arredores de Estocolmo, filho único de Margarethe e Rune, casal modelo da austera pequena-burguesia nórdica, donos de uma confeitaria, até se mudarem todos para Monte Carlo, em oportuna fuga ao frio e ao fisco.

Seguindo as pisadas do pai, um dos maiores jogadores de ténis de mesa da Suécia, Borg começou pelo pingue-pongue, passando depois para o hóquei no gelo e, aos dez anos, abraçando definitivamente o ténis. No livro evocam-se duas personalidades marcantes: a tenista romena Mariana Simionescu, como quem casou, perdido de amor e de enorme dependência psíquica (pormenor ternurento: ele trava-a por “Scumpo”, ela por “Scumpule”); o homem que do barro fez um ídolo d’altares, Lennart Bergelin. Vejam os vídeos nas finais de Wimbledon, quer a do triunfo de 1980, quer a da derrota de 1981: Mariana nervosa, como convém a uma companheira extremosa; Lennart impassível, na melhor tradição sueca.

No livro recordam-se os anos dourados em que o ténis, apesar de já inundado de cifrões, ainda tinha muito de espontâneo e quase amadorístico, sendo os courts atravessados por jogadores lendários não apenas pelo seu desempenho mas também – ou sobretudo – pelo timbre das suas personalidades. Se McEnroe era explosivo e irascível, também o era o romeno Ilie Nastase, com a atenuante de este ser completamente doido (um dia, vingando-se de um árbitro que marcou um jogo demasiado cedo para os seus hábitos noctívagos e excêntricos, Nastase apresentou-se no court vestido de… pijama). Desfile de génios: o fogoso Jimmy Connor, casado com uma ex-coelhinha Playboy; o americano-lituano e sobretudo incorrigível boémio Vitas Geraulaitis, parceiro de Borg nos treinos, viciado em drogas, prematuramente falecido por uma estúpida fuga de gás no quarto de um hotel em Southampton; Roscoe Tanner, o do serviço poderosíssimo; Ion Tiriac, convertido em mega-empresário na sua Roménia natal, indubitavelmente o tenista com pior aspecto de todos os tempos; o argentino Guillermo Vilas, que numa ilha do Pacífico festejou uma vitória do seu ténis, nos braços da monegasca princesa Carolina; Arthur Ashe e a sua classe afro-americana. O livro de Borg fala de todos eles, incluindo de John McEnroe, sendo este tratado de forma amistosa, talvez um pouco sobranceira, mas enfim.

Outro livro que tenho aqui por perto é também da autoria de Borg (e, no exemplar que possuo, está autografado pelo Deus…), e chama-se “My Guide to Better Tennis”. Da londrina Express Books, com desenhos de George Stokes, editado por Dennis Hart, consiste essencialmente num conjunto de “lições” da técnica de Borg, por muitos considerada herética quando o sueco surgiu em cena; ninguém compreendia o modo – potente, atenção – como o sueco batia a esquerda agarrando a raquete Donnay com as duas mãos.

Quanto ao filme, estreou há um par de semanas nos cinemas portugueses, sendo realizado pelo documentarista dinamarquês Janus Metz. Borg vs. McEnroe, título óbvio. Não o vi ainda, mas ao ler as críticas fiquei um pouco desorientado, confesso. Com todo o respeito pela crítica de cinema, e pelo natural subjectivismo de quem vê a fita, é estranha a abissal disparidade de juízos. O Público concede-lhe apenas uma estrelinha, dizendo que o filme, “a não ser que seja um grande entusiasta do ténis, é bastante dispensável”. O Expresso contempla a fita com duas estrelas e aplaude, afirmando que ela “é muito mais do que o filme biográfico que se esperava”. Os mais entusiastas foram os críticos do Diário de Notícias, que salientam o desempenho de Stellan Skarsgard, na pele do treinador Lennart Bergelin, e, acima de tudo, de Sverrir Gudnason, no papel principal, sendo assombrosa, de facto, a sua parecença física com Björn Borg. Há a comparação com “Rush – Duelo de Rivais”, o filme que retrata a rivalidade entre Niki Lauda e James Hunt na Fórmula 1, e destaca-se a aclamação da película de Metz no Festival de Toronto, onde os jornalistas do Diário de Notícias e do Expresso puderam entrevistar o realizador e os actores.

Seria preciso aguardar 28 anos para que uma final de Wimbledon igualasse o épico confronto de Borg contra McEnroe, que ditou a última vitória no torneio inglês. Falam do jogo de 2008 entre Roger Federer e Rafael Nadal, mas, desculpem a nostalgia, vivemos um tempo em que os campeões são demasiado assépticos e insonsos para merecerem registo. Recordamos Boris Becker, sem dúvida, mas porquê, além das vitórias nos courts?

Enquanto isso, Borg entrou em declínio: cansaço de viver, depressão, loucura, teve problemas com as Finanças, o que acontece a todos os mamíferos; separou-se de Mariana, mal sobrevivendo depois a uma relação atribuladíssima com uma italiana digna de Fellini, a cantora popularucha Loredana Berté. Em 1991-1993, tentou regressar aos courts, obviamente sem sucesso. Em Março de 2006, foi ao ponto de colocar à venda, numa leiloeira de Londres, as taças que conquistara ao longo de uma carreira prenhe de triunfos e duas das raquetes que lhe deram aquelas vitórias. Muitos tentaram dissuadi-lo deste gesto de loucura, entre os quais Jimmy Connors e Andre Agassi. Björn Borg só desistiu deste intento quase suicidário quando recebeu um telefonema. “What’s up? Have you gone mad?”, “What the hell are you doing?”, perguntas que calaram fundo aos ouvidos e ao coração de Björn Rune Borg. O sueco ouviu, pensou, e desistiu de vender as suas taças. No telefonema intercontinental, do outro lado da linha estava John Patrick McEnroe Jr.

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