Da Rússia, sem amor

"Nothing is true...", de Peter Pomerantsev, é um livro sobre a Rússia de Putin, escrito em jeito de reportagem. E vai fundo, até ao coração das trevas.

“Quando eu morrer, como irei reconhecer-te no paraíso?”, perguntou em desespero uma menina de sete à sua mãe, quando ambas se encontravam sequestradas, juntamente com várias centenas de pessoas, no Teatro Dubrovka de Moscovo, em Outubro de 2002.

Naquela noite exibia-se o primeiro musical russo, a plateia estava cheia, cerca de 850 espectadores. Uns 40 ou 50 terroristas chechenos invadiram o teatro e ameaçaram fazer explodir as bombas que traziam agarradas ao corpo. Ao fim de três dias de tormento e pavor, com o Presidente Putin a recusar quaisquer negociações com os terroristas, as forças de segurança introduziram no sistema de ventilação um gás entorpecente, poderosíssimo. Os assaltantes caíram instantaneamente no chão, adormecidos, e foram abatidos um a um pelas forças de resgate. Instalou-se o caos. As equipas médicas de socorro que acorreram ao local ignoravam sequer que tinha sido espalhado um gás no interior do teatro. Entre os sequestrados, 130 acabariam por morrer, em larga medida devido à acção brutal das forças paramilitares russas e, sobretudo, à confusão reinante entre médicos, enfermeiros, socorristas e polícias.

Moscovo vivia – e vive? – abalada pelo espectro do terrorismo islâmico. As temíveis “viúvas negras”, mulheres suicidas que se fazem explodir em qualquer ponto da cidade onde esteja muita gente, já não têm o perfil típico de outros tempos, quando eram viúvas ou filhas dos mortos na guerra da Chechénia. Agora, são jovens de classe média, convertidas ao islamismo radical pelos pregadores salafitas e wahabitas financiados pela Arábia Saudita e outros países do Golfo.

Não é apenas do terror, longe disso, que trata o livro “Nothing Is True and Everything Is Possible”, de Peter Pomerantsev. O subtítulo é esclarecedor: “The Surreal Heart of the New Russia”. Há muitas obras sobre a Rússia contemporânea, como “A Mística de Putin”, de Anna Arutunyan, ou “Putilândia”, de Bernardo Pires de Lima. E, ainda que já bastante desactualizado, sobre os oligarcas existe um livro maciço, “The Oligarchs”, de David Hoffman.

A perspectiva de Pomerantsev, todavia, é diferente, sendo o seu livro escrito em jeito de reportagem, narrando sucessivamente casos ou testemunhos de pessoas que foi encontrando durante os anos em que esteve na Rússia.

Jornalista nascido em Moscovo, mas com nacionalidade britânica (os pais emigraram para Inglaterra na década de 1970), residente em Londres, com contribuições regulares no Financial Times, no Wall Street Journal, na Atlantic Monthly ou na Newsweek, Peter Pomerantsev viajou para Leste em 2006, numa altura em que o meio televisivo russo entrara em ebulição e não faltava trabalho nas produtoras e nos canais privados que, obviamente, actuavam – e actuam – sob vigilância apertada do Kremlin.

Como acontece em toda a parte, o boom das televisões e os seus conteúdos feéricos (concursos, talk-shows, séries românticas e telenovelas) eram, em simultâneo, uma consequência e um factor de promoção do clima de euforia vivido em toda a Rússia e, em particular, na cidade de Moscovo.

Pomerantsev acompanhou, extasiado, a atmosfera surreal que o rodeava, entrevistando raparigas quase adolescentes, lindíssimas, que os novos milionários mantinham como amantes de luxo, em apartamentos rigorosamente vigiados, alimentadas a roupas de marca, automóveis topos de gama e joalharia barroca. Como bónus, 4.000 dólares por mês e férias de praia na Turquia ou no Egipto, duas vezes ao ano.

Em “Nothing Is True…”, percorremos ginásios e academias de dança ou escolas onde se iniciam as jovens aspirantes a modelos e actrizes, que afluem de todas as regiões da Rússia, nas artes de bem-servir os seus donos. Os nomes dizem tudo: “Escola Geisha”, “Como Ser Uma Verdadeira Mulher”. A televisão alinha pelo mesmo diapasão, exibindo concursos intitulados “Como Casar com um Milionário”. No mais famoso clube nocturno de Moscovo, as raparigas exibem-se na pista de dança para que os milionários as observem dos camarotes, na penumbra.

Chegados em Bentleys e Mercedes pretos (os carros são sempre pretos), blindados e com vidros à prova de bala, rodeados de guarda-costas, os “Forbeses”, como lhes chamam inspirados pela famosa lista da Forbes, avaliam tranquilamente o material em exposição. Uma delas, Oliona, tinha consciência de que o seu prazo de validade estava prestes a expirar: com 22 anos de idade já não conseguia competir com as raparigas de 18 ou 19 anos que dançavam voluptuosamente para os milionários que, na gíria desse submundo erótico, são conhecidos por “patrocinadores”.

As raparigas, loiras platinadas, têm uma designação mais crua e brutal, tiolki, “gado”, e a concorrência para conquistar os favores de um “Forbes” é feroz, impiedosa: há centenas de “gado” para cada potencial “patrocinador”. Recusando a designação de “proxeneta”, uma das celebridades da TV, Peter Listerman, apresentava-se como “promotor de encontros”: as raparigas, a quem Listerman chamava “as galinhas”, iam ter com ele em busca de um milionário e este, por sua vez, pagava a Listerman vários milhares de rublos por cada “galinha” que satisfizesse os seus insondáveis caprichos.

Longe dali, a cidade de Ussuriysk, famosa pela sua feira de automóveis de luxo. Os mais endinheirados permitem-se extravagâncias como mandar instalar jacúzis na parte de trás dos carros acabados de comprar. Noutro ponto do Império, Pomerantsev encontra-se com Jambik Hatohov, uma criança monstruosa: aos sete anos, pesava 100 quilos, era uma celebridade nacional. Os médicos avisaram repetidamente a mãe que aquela obesidade obscena poderia ser fatal para a criança, mas a Srª Hatohov não queria que o filho fizesse dieta e perdesse a fama – e os proventos que decorriam das suas constantes aparições mediáticas, em concursos, reality-shows ou “entrevistas de vida”. Aos 11 anos, Jambik Hatohov pesava 146 quilos mas a sua aura caíra em declínio: no México surgira uma criança ainda mais gorda do que ele.

O livro vai fundo, até ao coração das trevas. Desde Dinara, uma prostituta de rua, muçulmana, que vivia atemorizada pela vingança de Alá e do Profeta, até ao centro político da Rússia: Vladislav Surkov, o “demiurgo do Kremlin”, um dos artífices do poderio de Vladimir Putibn, o homem que, por detrás das cortinas, tanto financia grupos de extrema-direita para atacarem os activistas pró-democracia como patrocina organizações de defesa dos direitos humanos para, no minuto seguinte, apoiar movimentos nacionalistas que denunciam aquelas organizações, acusando-as de serem instrumentos criados para servir os interesses do Ocidente, o eterno inimigo.

A “estabilidade”, o valor supremo da era Putin, assenta numa gestão ardilosa desse rendilhado de grupos, entidades obscuras, interesses organizados, crenças religiosas e corrupção em massa, mas superiormente controlada. “Nos últimos vinte anos, vivemos num sistema comunista em que ninguém acreditava; e depois veio a democracia, as máfias e os oligarcas, e percebemos que isso não passa de ilusões, que é tudo uma questão de relações públicas”, disse um dos entrevistados por Pomerantsev.

Um caso dilacerante: Yana, proprietária de uma empresa de sucesso que importava materiais químicos de limpeza para fábricas e instalações militares, foi acusada de trazer para a Rússia uma substância proibida. A prática é conhecida e até tem um nome: “reiderstvo”. Algumas empresas que se destacam e conquistam mercados são alvo de uma manobra letal, perpetrada com a cumplicidade das autoridades; neste caso, a agência responsável pelo combate ao tráfico de drogas acusou Yana de ter os armazéns da sua firma uma quantidade inusitada de um produto considerado ilícito. Um produto que, note-se, Yana importara legalmente, tendo na sua posse os respectivos boletins e registos de autorização, facto que pouco interessou às polícias, aos procuradores e aos juízes.

Encarcerada durante vários meses, pressionada por todos os lados, incluindo pela sua família, Yana acabou por aceitar vender a empresa aos que, desde o início, tinham congeminado o plano macabro para se apoderar da sua firma, “contratando” os serviços das autoridades. É uma forma muito eslava – e muito comum – de distorcer a concorrência. Noutra ocasião, a produtora televisiva em que Pomerantsev trabalhava foi alvo de uma visita dos inspectores das finanças. Sempre que isso sucedia, era um dia de festa. Os empregados tinham folga e os fiscais sentavam-se amigavelmente com os donos da empresa e os directores financeiros, tomando chá, discutindo o montante do suborno que deviam receber para fechar os olhos à evasão fiscal.

Noutra história contada no livro surge a modelo Ruslana Korshunova. Originária do Cazaquistão, com uns olhos inigualáveis, despertou a atenção de uma “caçadora de modelos”, Tatyana Cherednikova, que passa a vida a percorrer os confins da Rússia em busca de mulheres deslumbrantes (a Rússia produz 15% do petróleo do mundo e mais de 50% das manequins que desfilam em Paris ou em Milão).

A história de Ruslana acabou da pior forma possível: com 21 anos, lançou-se do seu apartamento em Water Street, Manhattan. Aclamada em todo o mundo, conhecida como o rosto de campanhas publicitárias colossais, oriunda de uma família estável, que lhe acontecera? A pesquisa detectivesca de Pomerantsev acaba por dar com uma seita estranha, a Rosa do Mundo. Terá sido aí, e nos seus cursos de autoajuda e terapia emocional, que a personalidade de Ruslana se começou a desintegrar, culminando no suicídio em Nova Iorque. Nada de muito estranho num país em que Anatoly Kashpirovsky, hipnotista profissional que preparou os atletas olímpicos russos, se tornou uma vedeta televisiva, em programas vistos por milhões de espectadores. Num desses programas, o hipnotizador pediu à audiência que colocasse um copo de água frente ao televisor. Milhões de russos obedeceram-lhe. Depois, proclamou que a água, devido aos seus poderes transcendentes, tinha agora com “energias curativas”. Milhões de russos beberam-na.

Não é caso único: outra vedeta mediática e mediúnica, Grabovoy, afirmou num programa televisivo que era capaz de fazer ressuscitar as vítimas da guerra na Chechénia e dos atentados terroristas. Milhões de pessoas acreditaram nele, muitos procuraram-no em busca dos seus familiares mortos.

Enquanto isso, Benedict, um perito de origem escandinava nomeado e remunerado pela União Europeia, avaliava o estado da democracia e do “desenvolvimento” na Federação russa. Confirmava-se em pleno aquilo que Michael Ignatieff chama “autoritarismo democrático”, a mais perversa adulteração dos princípios da liberdade e da democracia.

Na sua check-list, o perito da União Europeia ia assinalando, ponto a ponto: “Democracia? Sim, a Rússia é uma democracia presidencial com eleições a cada quatro anos”. “Desenvolvimento da sociedade civil? Sim, a Rússia tem muitas organizações não-governamentais”. “Propriedade privada? Sim, na Rússia há propriedade privada”. Na aparência, uma economia de mercado, uma sociedade aberta, liberal, democrática. Um dia, o expert vindo de Bruxelas procurara saber mais sobre uma medida tomada por Vladimir Putin. Enquanto “beneficiária” do programa de apoio da União, a Rússia tinha o direito de veto sobre os observadores externos enviados de Bruxelas. O especialista em democracia perdeu o emprego, ficando à deriva em Moscovo. Como, de resto, todos nós, depois da leitura deste fascinante e terrível “Nothing Is True and Everything Is Possible”. Um livro arrebatador.

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