A anatomia do défice de 2017

O economista Joaquim Miranda Sarmento analisa a redução do défice público para 0,92% em 2017, baseada em fatores pontuais. E subscreve a decisão do Eurostat sobre a CGD.

O INE divulgou o Procedimento dos Défices Excessivos de março de 2018, apurando um défice de 1% em percentagem do PIB se excluirmos a operação com a Caixa Geral de Depósitos. Como se chegou a este número tão baixo? Recorde-se que, em 2015, o défice tinha sido de 3% do PIB (excluindo a operação com o BANIF). Esta descida de dois pontos percentuais (p.p.) do PIB representa, em termos nominais, cerca de 3.5 mil M€. No entanto, cerca de 2/3 (2.4 mil M€) desta redução baseia-se em fatores pontuais, conforme descrito na tabela seguinte.

Do ponto de vista fiscal, a redução do IRS e do IVA da restauração representou uma redução de impostos de 1,100 M€, totalmente compensada pelo aumento dos impostos indiretos e do IMI (ver secção seguinte).

Fonte: Ministério das Finanças

 

Desta forma, o crescimento económico e a redução do desemprego acima desse crescimento (com efeitos negativos na produtividade), levou a que, em 2016-2017, a receita fiscal e contributiva crescesse cerca de três mil M€. Mas esse valor não foi suficiente para o aumento de despesa estrutural (reposição de salários e aumento das prestações sociais em 1.4 mil M€) e para o aumento das pensões (decorrente do envelhecimento populacional, que foi de 1.2 mil M€) e para a natural dinâmica de crescimento da despesa (que estimo em mil M€), houve que reduzir o investimento público (entre 2015 e 2017 caiu 700 M€, dado que passou de 4.1 mil M€ para 3.4 mil M€) e aumentar substancialmente as cativações.

Desta forma, a consolidação que não resultou dos efeitos temporais atrás descritos teve de ser obtida com o menor investimento público e o maior volume de cativações de sempre.

O aumento da carga fiscal

Os números de 2017 mostram também um aumento da carga fiscal, atingindo 37% do PIB. Este é o valor mais alto de sempre. Mas deve ser olhado com algum cuidado. Entre 2016 e 2017, o governo baixou o IRS (alterando os escalões e terminando com a sobretaxa) num total de 700 M€ e reduziu o IVA da restauração que vale cerca 500 M€/ano. Refira-se que já aqui afirmámos que a descida do IVA da restauração é, porventura, a pior medida de política económica e orçamental que foi tomada (subsidia os donos dos restaurantes ou os consumidores, que são maioritariamente ou pessoas de rendimentos médios/altos ou turistas). Ou seja, se considerarmos apenas 2016 e 2017, a descida de impostos valerá cerca de 1.2 mil M€ Em contrapartida, o aumento dos impostos indiretos e do IMI representa um aumento de receita fiscal em 2016 e 2017 de cerca de mil M€.

Por aqui se vê um aspeto relevante: não houve descida de impostos entre 2016 e 2017. Houve apenas uma reconfiguração da carga fiscal. Se alargarmos o período para 2016-2018 (usando as previsões do OE/2018), temos que a redução de IRS atinge um valor de 1.2 mil M€, o que, somando o efeito do IVA da restauração, representa uma redução de impostos de 1.7 mil M€. Durante esse período, o aumento de impostos indiretos e IMI representam cerca de 1.3 mil M€. Ou seja, só em 2018, e beneficiando do ponto de vista orçamental dos vários efeitos pontuais atrás descritos e do crescimento económico, é que houve margem para uma pequena redução de impostos, na ordem dos 400 M€.

Valores em milhões de euros. Fonte: Ministério das Finanças

Mas, então, como justificar o aumento da carga fiscal em % PIB? Resulta, em primeiro lugar, do facto de que a redução de impostos apregoada é bastante pequena (0.2 p.p. do PIB). Mas resulta que o emprego está a crescer mais que o PIB (o que tem impacto na receita de IRS e das contribuições sociais) e que parte do crescimento vem do turismo, que também tem um impacto significativo na cobrança de impostos. Mas isso só vem mostrar que:

  1. A redução de impostos que o governo apregoa é extremamente reduzida.
  2. Os fatores que fazem crescer a receita fiscal são cíclicos, como atrás referi, o que mostra a fragilidade desta consolidação orçamental, que não aguentará o próximo embate recessivo

A decisão do Eurostat sobre a CGD

O INE, seguindo a decisão do Eurostat, incluiu a recapitalização da Caixa Geral de Depósitos no défice de 2017. A recapitalização da Caixa envolveu um apoio público que ascendeu a um total de cerca de quatro mil M€ (2% PIB). Esta decisão elevou o défice de 1% para 3%.

Refira-se que esta decisão é meramente estatística e sobre o défice. Em qualquer caso, o valor iria sempre à dívida pública. E mesmo que esta decisão colocasse o défice acima dos 3%, isso não teria qualquer efeito do ponto de vista do Procedimento dos Défices Excessivos (dado que a avaliação da Comissão Europeia exclui os apoios aos bancos do valor do défice).

O Ministro das Finanças veio invocar que a decisão do Eurostat era errada. Saúde-se, em primeiro lugar, a decisão do INE em publicar os argumentos quer do Eurostat, quer do Governo. Não deixa de ser verdade, como invocado pelo Governo, que a Comissão Europeia considerou que a recapitalização da Caixa não era um auxílio de Estado (se fosse, as condições seriam muito diferentes). Isso introduziu alguma novidade naquilo que são as regras de contabilização das operações de capitalização de entidades financeiras, e que se encontram descritas no SEC 2010 (Sistema Europeu de Contas 2010, isto é, as regras de contas nacionais em que se apuram o défice e a dívida pública para efeitos do reporte a Bruxelas) e do Manual do Eurostat (“Manual on Government deficit and debt”).

Contudo, as regras do Manual do Eurostat definem que, caso a injeção de capital ocorra numa instituição financeira que é detida pelo Estado (ou que passe a ser detida), existe uma transferência de capital (isto é, a recapitalização vai ao défice) se:

  1. Os fundos são transferidos sem uma contrapartida de valor semelhante.
  2. Os fundos são transferidos sem uma taxa de retorno adequada.
  3. Os fundos são transferidos para uma entidade com resultados transitados negativos (sendo que a parte que excede esses prejuízos, se se provar que terão uma taxa de retorno adequada, podem ser registadas como uma operação financeira, isto é, não ser contabilizadas no défice).
  4. No entanto, caso existam acionistas privados na instituição financeira, e estes participem na injeção de capital nos mesmos moldes que o Estado (em termos de riscos e retornos – “risk and rewards”), então deve considerar-se que a entrada de capital é uma operação financeira, sem impacto no défice.

O governo invocou a decisão da Comissão Europeia atrás referida, bem como a natureza conjuntural dos prejuízos da Caixa, dado que praticamente todo o setor financeiro nacional (e internacional) desde 2008 que acumula prejuízos.

O Eurostat considerou, porém, na sua apreciação final, que esta operação deve ser registada como transferência de capital com impacto no saldo da Administração Pública tendo como argumentos:

  1. A decisão da Comissão Europeia de que a recapitalização não constitui ajuda de Estado não constituir um elemento decisivo para a análise estatística.
  2. Não se pode considerar que os investidores privados e governo participaram em condições semelhantes na injeção de capital.
  3. As perdas acumuladas da Caixa, no período 2011-2016, superarem o montante das injeções de capital do Estado.

Afigura-se-nos que a decisão do Eurostat é correta. Não podemos ignorar que a Caixa Geral de Depósitos teve prejuízos superiores aos quatro mil M€ agora injetados. E temos a perfeita noção que muitos desses prejuízos se devem a NPL (Non Performing Loan) de empréstimos dados em condições de crédito muito duvidosas, apenas possíveis num determinado contexto “político” que o banco viveu durante vários anos.

Nota: Esta análise às contas públicas integra a Nota Mensal do Fórum da Competitividade

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