Trabalho independente nem sempre tem “tradução em faturas”

  • Lusa
  • 21 Outubro 2017

O fiscalista Manuel Faustino considera que há aspetos no trabalho independente que "não têm tradução em papéis e faturas", considerando as alterações ao regime simplificado "uma aberração jurídica".

Criado para simplificar a tributação dos rendimentos dos profissionais liberais e dos empresários em nome individual, o regime simplificado de IRS permite atualmente que seja aplicado um coeficiente que resulta de uma presunção legal de despesas: por exemplo, o rendimento ganho pelos profissionais liberais é considerado apenas em 75% devido à aplicação de um coeficiente de 0,75 que se traduz numa dedução automática de 25%.

Na proposta do Orçamento do Estado para 2018 (OE2018) são introduzidas alterações que limitam as deduções automáticas decorrentes da aplicação daqueles coeficientes, não podendo daqui resultar um rendimento tributável inferior a 4.104 euros (correspondente à dedução específica dos rendimentos do trabalho dependente) ou à dedução das despesas relacionadas com a atividade.

Em entrevista à Lusa a propósito do OE2018, Manuel Faustino deixou várias críticas a estas mexidas ao regime de tributação dirigido aos trabalhadores independentes, onde se incluem os profissionais liberais (como advogados, tradutores e lojistas) mas também agricultores, comerciantes e industriais.

Um dos aspetos que o primeiro diretor dos serviços do IRS do Fisco criticou é saber qual o rendimento considerado para determinadas atividades: “No caso de um agricultor, qual é o salário que lhe vão considerar para efeitos de determinar qual é o lucro que apura na atividade agrícola e para que ‘e-fatura’ é que isso vai? O que é que tributam na atividade agrícola? Tributam o rendimento de capital, isto é, o rendimento do que a terra produz? Ou o rendimento de capital e o do trabalho?”.

Também o intelecto é um campo relativamente ao qual Manuel Faustino identifica particularidades que não se compadecem com as alterações agora propostas: “Será que posso afetar o meu cérebro à minha atividade e atribuir um valor a esse intangível? Posso ir fazendo uma amortização anual a título do que vou gastando?”, afirmou, acrescentando que estas situações “não têm tradução em papéis e em faturas”.

Além disso, o fiscalista referiu-se à dificuldade de imputar as várias despesas dedutíveis aos diferentes tipos de rendimento, o que, no regime simplificado, é relevante porque o IRS atribui coeficientes diferentes a cada tipo de rendimento: por exemplo, o dos profissionais liberais é de 0,75 (o que lhes confere uma dedução automática de 25%), mas o da venda de mercadorias e produtos é de 0,15 (atribuindo-lhes uma dedução automática de 85%).

O problema é que a categoria B “é uma categoria plurifuncional do ponto de vista das atividades que nela podem constar para uma mesma pessoa”: por exemplo, um profissional liberal pode simultaneamente ter uma exploração agrícola e ter uma loja e a cada um destes rendimentos é atribuído um coeficiente de presunção de despesas distinto.

“Então [neste caso] vou ter em cada um deles um limite diferente? O senhor secretário de Estado diz que posso comprar o saco das batatas para cozinhar em casa [e deduzir essa despesa no regime simplificado], mas tenho de fazer a imputação se tiver três atividades. Como é que imputo [esta despesa] aos [rendimentos] profissionais, agrícolas e comerciais?”, lançou.

Também o critério para definir quais as despesas que poderão ser consideradas no novo regime — que será um requisito de relação (e nao de indispensabilidade) com a atividade — foi criticado por Manuel Faustino.
“Se eu comprar ‘Os Maias’, do Eça de Queirós, porque preciso de fazer uma citação numa peça [jurídica] que estou a escrever, é uma despesa relacionada que equivale ao Código Civil que preciso de ter atualizado ou não é relacionada?”, exemplificou.

O fiscalista entende que, da forma como estão feitas, as alterações são “uma aberração jurídica”: “O regime juridicamente como está construído, e peço desculpa a quem formulou a proposta, mas, se é jurista, sabe que é uma aberração jurídica”.

Isto porque “está a aproveitar a parte que quer da presunção [de despesas] para a pôr num limite” e faz com que “a presunção que o contribuinte até agora tinha a seu favor e, portanto, não precisava de provar nada, vai ter de a provar”, o que se traduz na “inversão do ónus da prova numa presunção legal, o que é outra novidade”.
Para o advogado, não faz sentido que se continue a usar uma presunção legal de gastos para estabelecer o limiar máximo das despesas aceites no regime simplificado, defendendo que, “se se quer atingir o princípio constitucional da tributação pelo rendimento real, então, se a pessoa comprovar mais despesas do que os 25% [da dedução automática a que agora tem direito], que se lhe conceda essa dedução” pela totalidade.

Sublinhando que o novo regime proposto “é tão simplista que não resolve nada”, Manuel Faustino apela a que, se não se acabar já com estas mudanças ao regime, “pelo menos que se passe de algo que já está legislado para uma autorização legislativa para estudo” pelo Governo.

Escalões de IRS têm “pecado original” de não atualização à inflação

O fiscalista Manuel Faustino considera que os escalões do IRS “têm um pecado original”, que é o facto de, ao contrário do que tem acontecido, não terem sido atualizados à taxa de inflação na proposta orçamental para 2018. Recordou que “o Governo atualizou impostos com base na taxa esperada de inflação [mas] não atualizou os escalões do IRS com a taxa da inflação”.

“Devia ter atualizado todos. Independentemente do que fez, não atualizou os escalões do IRS à taxa da inflação e isso significa que não desagravou tanto quanto devia, [porque] atualizar à taxa da inflação não é agravar nem desagravar, é manter tudo igual”, defendeu, afirmando mesmo que, por esta via, “indiretamente há um agravamentozinho”.

No entanto, esta é uma situação que pode ser corrigida ainda na discussão na especialidade da proposta de OE2018 e em relação à qual o fiscalista deixa um apelo: “Esperemos que na assembleia corrijam, ainda que tenham de refazer contas”.


Outro aspeto apontado por Manuel Faustino prende-se com aquilo que designa como “o último escalão não camuflado” do IRS: a taxa adicional de solidariedade, criada no Orçamento do Estado para 2012 e que é cobrada aos contribuintes com rendimentos superiores a 80 mil euros.

Atualmente, esta taxa adicional, que acresce aos cinco escalões do imposto que o código em vigor prevê, é de 2,5% para os patamares de rendimento entre os 80 mil e os 250 mil euros e de 5% para os montantes que excedam aquele valor.

“O último escalão não camuflado começa nos 80.640 euros e a célebre taxa adicional de solidariedade de que ninguém fala continua marcada nos 80 mil e até 250 mil. Vem na mesma no orçamento. É uma coisa diferente? Ela começava no último escalão quando o último escalão era de 80 mil e, supostamente, estes 640 euros, que já resultavam de um uma atualização por inflação, deviam ter sido também ajustados. Esqueceram-se?”, questiona o fiscalista.

Além disso, Manuel Faustino lamenta que, apesar de esta taxa ter surgido como adicional e de ser também provisória, “ninguém fale da sua reversão”.

Na proposta de OE2018, o Governo aumenta o número de escalões do IRS, de cinco para sete, desdobrando os atuais segundo e terceiro escalões, uma medida que o executivo estima beneficiar cerca de 1,6 milhões de famílias.

Apesar de considerar que se trata de “um orçamento ‘soft’ e aceitável” do ponto de vista fiscal na medida em que “não se fazem muitas modificações” e “não se faz uma revolução fiscal no orçamento”, Manuel Faustino lamenta que a proposta orçamental não inclua medidas nas “áreas processual, penal, criminal e das contraordenações”.

O fiscalista atribui esta ausência de medidas ao facto de ter havido “uma rutura na continuidade da tutela fiscal direta”, com a saída do anterior secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, recordando que Fernando Rocha Andrade “tinha deixado indícios de que estaria a estudar essas matérias” e também temas relacionados com “condutas e procedimentos da AT [Autoridade Tributária] no sentido de os tornar mais transparentes”.
Para o perito, “isso teriam sido medidas que os contribuintes gostariam de ver e que talvez estivessem no orçamento e, se calhar, com agrado”.

Agricultores e comerciantes fora do alargamento do mínimo de existência

O fiscalista Manuel Faustino alertou que o alargamento do mínimo de existência previsto para 2018 abrange apenas os profissionais liberais e não todos os trabalhadores independentes, ficando de fora os agricultores e os comerciantes.

“Esse é o ‘lobby’ que o senhor secretário de Estado [dos Assuntos Fiscais, António Mendonça Mendes] defende? Provavelmente nunca foi agricultor, nunca foi comerciante. Então esses não têm direito ao mínimo de existência?”, lançou.

A proposta de OE2018 prevê que o mínimo de existência, que atualmente se destina apenas aos trabalhadores dependentes e aos pensionistas, passe a aplicar-se também aos profissionais liberais conforme listado na Portaria n.º 1011/2001.

Entre estes profissionais estão, por exemplo, arquitetos, artistas de teatro e bailado, pintores, desportistas, engomadores, jornalistas e repórteres, tradutores, explicadores, formadores e amas, que até aqui não contavam com esta proteção.

No entanto, continuam a ficar de fora da proteção do mínimo de existência os outros trabalhadores independentes que, atualmente, também estão na categoria B do IRS, nomeadamente os que trabalham em atividades comerciais ou industriais (antiga categoria C do código do IRS) e os que trabalham em atividades agrícolas, silvícolas ou pecuárias (antiga categoria D).

O primeiro diretor dos serviços do IRS do Fisco considera que “pelo menos os camponeses também têm direito ao mínimo de existência” e chamou a atenção para o risco de o autoconsumo vir a ser considerado como rendimento.

“Qualquer dia — e espero não estar a dar ideias — os velhotes da minha terra que cultivam as leiras para autoconsumo também começarão a ser tributados porque o autoconsumo é rendimento. O senhor secretário de Estado é que provavelmente ainda lá não chegou, ele disse que não é fiscalista”, acrescentou. Manuel Faustino apelou, no entanto, a que esta questão venha a ser clarificada na discussão do orçamento na especialidade: “Estou esperançado que a esquerda que apoia o Governo não vai deixar passar”.

Ainda em relação ao mínimo de existência, que deverá custar 80 milhões de euros e que passará a ser atualizado em função do Indexante dos Apoios Sociais (IAS), o fiscalista apontou que “continuam em valores fixos os mínimos de existência para as famílias até quatro dependentes ou com mais de quatro dependentes”, considerando que “também careciam de ser indexadas”.


Atualmente, o código do IRS determina que o mínimo de existência, que é de 8.500 euros para os trabalhadores dependentes e os pensionistas, sobe para os 11.320 euros de rendimento líquido para os agregados com três ou quatro filhos e para os 15.560 euros para os que tenham cinco ou mais filhos.

A proposta orçamental para o próximo ano mantém esta situação inalterada e também não altera o facto de o valor do mínimo de existência ser cortado para metade nos casos dos casados e unidos de facto que não optem pela tributação conjunta.

Já em agosto, Manuel Faustino tinha dito à Lusa que “o valor de rendimento líquido em princípio é para uma pessoa sozinha”, lamentando que “não existam situações para casados”, o que “cria discriminações em situações que deviam ser iguais”.

Na prática, o que está em causa é, por exemplo, um solteiro que aufira 600 euros por mês fica abrangido pelo mínimo de existência e não é tributado, mas um agregado composto por casados ou unidos de facto em que cada um ganhe igualmente 600 euros beneficia apenas de um mínimo de existência e não de dois.

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