Quem tramou António Domingues?

  • Margarida Peixoto
  • 12 Novembro 2016

Há 33 anos, o Parlamento português aprovou uma lei que viria a transformar o arranque da nova gestão da Caixa num pesadelo. Foi por pouco que a lei viu a luz do dia, mas houve quem se batesse por ela.

Eram 12 horas e 10 minutos do dia 4 de fevereiro de 1983. Manuel Tito de Morais, vice-Presidente da Assembleia da República, vai direto ao assunto. Não há tempo a perder: o Parlamento seria dissolvido naquele mesmo dia. Quase sem debate, o projeto de lei 171/II foi aprovado. A história estava feita: os responsáveis por cargos políticos e equiparados seriam obrigados a apresentar declarações de rendimento e património ao Tribunal Constitucional. Foi esta a lei que trocou as voltas a António Domingues, que queria andar 33 anos para trás e ser presidente da Caixa Geral de Depósitos sem tornar pública a sua situação financeira. Mas afinal, de quem foi a ideia? Quem tramou António Domingues?

Naquele inverno de 1983, era Francisco Pinto Balsemão quem liderava o Governo. Um Executivo instável, apoiado pela Aliança Democrática, uma coligação entre o PSD, o CDS e o Partido Popular Monárquico. À frente da pasta das Finanças estava João Salgueiro — que viria mais tarde a destacar-se como presidente do Banco de Fomento e Exterior, do Banco Nacional Ultramarino e da dita CGD. É o primeiro suspeito: uma lei que obriga gestores públicos, entre os quais da banca, a apresentar declarações de rendimentos não poderia ter sido feita sem a sua participação.

João Salgueiro tinha na equipa o trunfo perfeito para desenhar uma lei destas: José Robin de Andrade, um especialista em Direito Administrativo, licenciado pela Universidade de Lisboa com 17 valores e titular do curso Complementar de Ciências Político-Económicas da Faculdade de Direito de Lisboa, com 18 valores. Robin de Andrade era o seu secretário de Estado das Finanças.

Capítulo 1. A génese

Mas as leis não se fazem sozinhas, têm de ser propostas por alguém e aprovadas no Parlamento. E as catacumbas da Assembleia da República contrariam a tese que à primeira vista parecia óbvia. É que o projeto de lei que deu origem à lei que tramou António Domingues foi, afinal, de iniciativa parlamentar e não foi proposto por nenhum dos partidos que apoiava o Governo. É assim que reza a ata do debate na generalidade, em plenário, a 27 de janeiro de 1983:

O Sr. Presidente — Srs. Deputados, passamos agora à discussão e votação do projeto de lei nº 171/II, da ASDI, sobre o controle público da riqueza dos titulares de cargos políticos.

O Sr. Borges de Carvalho (PPM) — Dá-me licença, Sr. Presidente? É para interpelar a Mesa.

O Sr. Presidente — Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Borges de Carvalho (PPM) — Sr. Presidente, levanta-se-me aqui uma dúvida regimental que a Mesa ou o Plenário talvez possam suprir. É que o texto que nos é apresentado para discutir hoje é capeado com o nº 171/II — iniciativa do Sr. Deputado António Luciano Pacheco de Sousa Franco.”

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Sousa Franco ao lado de Mário Soares em Lisboa, em 1980, três anos antes da aprovação da lei

Aqui está: aquela proposta de lei foi uma iniciativa de Sousa Franco, que era deputado da Ação Social Democrata Independente, um partido fundado por ex-militantes do PSD, como o próprio Sousa Franco, mas também Joaquim Magalhães Mota e Sérvulo Correia. Naquele arranque dos anos 80 a desconfiança dos políticos estava na ordem do dia. Portugal afundava-se na crise económica, a caminho do segundo pedido de resgate ao FMI, que seria feito, precisamente, em 1983.

Este era o quadro macroeconómico do país, à data:

Fontes: INE, Banco de Portugal
Fontes: INE, Banco de Portugal

A ideia embrionária parece assim ter partido de Sousa Franco que, conforme explica no preâmbulo do seu projeto de lei, quer “moralizar” e tornar mais efetiva a democracia portuguesa. “A transparência da situação financeira dos titulares dos cargos políticos exerce uma importante função em democracia”, defende o ex-deputado. “Não apenas ela corresponde a uma forma de prestar contas à comunidade, como favorece a pública inexistência de escândalos financeiros ou a sua prevenção, prestigiando assim a democracia e os titulares de cargos democráticos, quer diretamente por eleição, quer por nomeação ou cooptação políticas”, argumenta.

Mas a história não foi assim tão simples. No dia em que esta proposta chega a debate na generalidade, Sousa Franco já não era deputado da Assembleia da República. Sim, isso mesmo: a história desta lei esteve perto de não passar do primeiro capítulo. O projeto de lei foi submetido por um deputado que já não o era.

Capítulo 2. Os argumentos

Continua Borges de Carvalho, o deputado do PPM, a expor ao Presidente da Assembleia da República, Leonardo Ribeiro de Almeida, naquela tarde do dia 27 de janeiro. Referia-se ao texto do projeto de lei:

“Vem, pois, assinado por um ex-senhor deputado. Ora, uma vez que as iniciativas legislativas são dos deputados e não dos grupos parlamentares e que o autor do presente projeto de lei há muito que não é deputado, pergunto a V. Ex.ª, Sr. Presidente, se será regimental a discussão do diploma que consta da ordem do dia de hoje.”

A intervenção de Ribeiro de Almeida foi determinante. Explicou que as propostas só são dos deputados no momento em que são submetidas à Assembleia da República. Assim que são admitidas, passam a ser dos grupos parlamentares. Além disso, “o pedido de marcação desta ordem do dia veio subscrito pelo Sr. Deputado Magalhães Mota, em ofício emitido pelo Grupo Parlamentar da ASDI. A nós, isso parece-nos bastante como assunção do projeto”, argumentou.

"Caluniados foram sempre os nossos homens públicos, e o século XIX e o primeiro quartel do século XX deram-nos bastos exemplos de boatos de riquezas atirados sobre quem, às vezes, apertava bem apertado o cinto na sua economia caseira.”

Raul Rego

Os Políticos e o Poder Económico

O debate prosseguiu durante mais algum tempo, com o monárquico Borges de Carvalho a opor-se à discussão do projeto de lei. A defesa da proposta foi feita por Vilhena de Carvalho, deputado da ASDI. Frisou que o objetivo principal da iniciativa era “a moralização da vida política”, citou Raul Rego, no livro Os Políticos e o Poder Económico, para dizer que “caluniados foram sempre os nossos homens públicos, e o século XIX e o primeiro quartel do século XX deram-nos bastos exemplos de boatos de riquezas atirados sobre quem, às vezes, apertava bem apertado o cinto na sua economia caseira”.

E citou ainda a sabedoria do povo, que diz que “quem não deve não teme”, para depois concluir que “a verdade é que não basta que os titulares de cargos políticos sejam honestos; têm de, como a mulher de César, ao menos, parecê-lo, apresentando-se em público como tal.”

Mas há uma dúvida que persiste da apresentação da proposta feita por Vilhena de Carvalho: em momento nenhum se fala de abranger os gestores das empresas públicas por esta obrigação que começou por ser desenhada a pensar nos políticos. Mesmo mais tarde, no decorrer da reunião plenária, o debate evoluiu para outras problemáticas. João Corregedor da Fonseca, deputado do PCP, sugeriu, por exemplo, que passassem a ser incluídos todos os presidentes de Câmaras do país. Há também dúvidas dos deputados do CDS quanto à publicidade da informação — querem saber que casos concretos justificam o acesso do cidadão comum às declarações de rendimentos. Mas sobre os gestores públicos, nada.

Capítulo 3. O articulado

Uma análise minuciosa à lei, mostra que o ponto dois do artigo 4º é a génese da formulação jurídica que viria a tramar António Domingues: “É equiparado a cargo político, para os efeitos da presente lei, o de gestor de empresa pública”.

Um especialista em Direito Administrativo ouvido pelo ECO explica que, à data, esta formulação já abrangia a Caixa e que a redação que viria a ser dada à lei nas alterações posteriores que foram feitas a este ponto específico (das cinco vezes que a lei foi alterada, houve duas, uma em 1995, outra em 2010, em que se mexeu neste artigo) pretenderam sobretudo acompanhar as alterações de natureza jurídica das próprias empresas públicas. Ou seja, o objetivo foi sempre evitar que a mudança jurídica das empresas públicas para, por exemplo, empresas participadas pelo Estado, fosse usada como argumento para excluir da obrigação de apresentar rendimentos pessoas que anteriormente já estavam abrangidas.

O problema é que, como o debate parlamentar sugere e o projeto de lei confirma, este ponto específico ainda não existia naquele dia 27 de janeiro. De quem foi a ideia de incluir, expressamente, os gestores das empresas públicas?

Capítulo 4. O contra relógio

O último deputado a falar no debate de generalidade do projeto de lei 171/II foi António Vitorino. Defendeu a iniciativa sem reservas: “O voto favorável do grupo parlamentar da UEDS [União da Esquerda para a Democracia Socialista] explica-se em dois minutos, já que a honestidade e a coerência não precisam de grandes rodeios nem de grandes discursos para serem expressas”. E frisou que “a declaração quando é voluntária tem um valor ainda maior do que quando é obrigada por lei.”

Mas para além dos argumentos favoráveis à proposta, Vitorino foi determinante por outro motivo: foi ele quem amarrou os deputados que votassem a favor na generalidade a um voto favorável também na especialidade e, por ordem de razão, na votação final global.

Tal como os deputados comunistas tinham chamado a atenção durante o debate, trabalhava-se em contra relógio para aprovar aquela legislação antes da dissolução da Assembleia da República. O receio era o de que o voto na generalidade, mas com pedidos de alteração na especialidade, não passasse de um golpe de teatro para demorar o processo e evitar que fosse concluído antes de o Parlamento perder poderes.

A decisão da dissolução tinha sido tomada pelo Presidente da República, Ramalho Eanes, poucos dias antes, a 23 de janeiro. E no mesmo dia em que se debatia esta proposta, corria o rumor de que a dissolução seria marcada para 4 de fevereiro. Esta foi a manchete do Diário de Lisboa, no dia seguinte:

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Por isso, António Vitorino, foi claro: “Em nome da dignidade do Estado e em nome da dignidade dos titulares de cargos políticos, votar hoje na generalidade este projeto de lei é assumir concomitantemente a responsabilidade de o fazer aprovar, na especialidade e na votação final global, no máximo de cinco dias e antes da dissolução da Assembleia da República e de entender a sua adoção como uma atitude, um primeiro passo, de moralização da nossa vida política, que uma nova maioria e um novo poder político tem que assegurar na plenitude de todas as instâncias do Estado democrático.”

Capítulo 5 – Os dias que tramaram António Domingues

Cinco dias: foi uma decisão tomada neste intervalo de tempo que 33 anos depois ditaria a polémica na Caixa, agora à beira de ficar com a gestão decapitada em vésperas de uma tão desejada recapitalização.

Também aqueles dias de 1983 foram conturbados. Os arquivos da Assembleia da República estão incompletos: há três livros, manuscritos, que correspondem às atas das reuniões da Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, entre os anos de 1980 a 1983. Há um que está em falta: precisamente aquele em que constaria o relato da reunião de 2 de fevereiro, quando as propostas de alteração foram apresentadas pelos partidos e introduzidas ao corpo inicial do projeto de lei.

À data, esta comissão parlamentar era presidida por António de Almeida Santos. Há o registo das presenças dos deputados, bem como as propostas de alteração que lhe foram submetidas. Mas em nenhuma destas propostas está o aditamento da alínea que tramou António Domingues. Ela aparece, pela primeira vez, no texto que sai consolidado da reunião da Comissão e que é aprovado a 4 de fevereiro, em poucos minutos, no mesmo dia em que o Parlamento acabaria por ser dissolvido.

Uma arquivista da Assembleia explicou ao ECO que não se pode dizer, com 100% de certezas, de quem foi a ideia de introduzir aquele acrescento. Mas garantiu que Almeida Santos “era assim”, muitas vezes “era ele quem escrevia o articulado final”, submetendo a sua própria redação à aprovação dos deputados. Este foi o documento que seguiu para o Presidente da Assembleia da República, e que tramou António Domingues.

Ministro da Finanças, Sousa Franco entrega o orçamento de estado na Assembleia da República, Lisboa, 12 de Fevereiro de 1996. ANTÓNIO COTRIM/LUSA
Sousa Franco em 1996, então Ministro da Finanças, a entregar a proposta do Orçamento do Estado a Almeida Santos no Parlamento

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